Caderneta de Cromos é um questionário breve, impertinente quanto baste, mais ou menos imbecil, sobre o mundo do cinema, em geral, e sobre o mundo em toda a sua inteireza, em particular. Filipa Rosário é professora universitária e investigadora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É directora da Associação Portuguesa dos Investigadores da Imagem em Movimento (AIM) e provavelmente não nos irá accionar judicialmente depois de a termos apelidado de “académica”. É fã de tuning, perdão, de Two-Lane Blacktop (A Estrada Não Tem Fim, 1971), do recentemente falecido Monte Hellman, e adora séries, perdão, (alguns) filmes de autor da Netflix. Tem um passado ligado ao temível PB e também ao menos temível PB. Prepara uma conferência dedicada ao Centenário de Edgar Morin, com o walshiano Luís Mendonça e o professor e realizador Pedro Florêncio. Não falámos sobre isto tudo, mas tocámos nos pontos essenciais (ah, outro tema importante presente na sua investigação recente: a paisagem), nomeadamente numa paixão louca que nutre por Gena Rowlands, ela que está na capa (a mais bela do mercado editorial!) da tese de mestrado que publicou pela Documenta em 2017: O Trabalho do Actor na Obra de John Cassavetes. Não leu? Não tem? Ganhe vergonha nessa cara.

1. Trabalhaste com Paulo Branco. Sabemos que conheceste muita gente durante esse período, tanto realizadores maiores do cinema português, pessoas da produção e na comunicação. Temos uma curiosidade: qual dessas pessoas te surpreendeu mais e porquê? Qual a mais bela demonstração de amor ao cinema que por lá testemunhaste? E… já nessa altura o Paulo Branco tinha um alvo com a cara de alguns críticos no qual praticava o lançamento dos dardos?
Não sei se alguém me surpreendeu assim tanto, não privava assim tanto com os realizadores mais velhos. Andava fascinada, agora vejo isso. Era bem novinha, aprendi muito, sobretudo sobre as ligações dentro de um grupo muito específico, muito particular, do cinema português. Também aprendi o que era trabalhar numa empresa, mesmo tratando-se de uma produtora, distribuidora e exibidora de filmes. Os papéis que temos de representar, o respeitinho, o ficar calada, coisas desse género. Fiz grandes amigos, amigos da vida. Bom, mas, saindo da minha bolha, aquela pessoa que parecia ser sempre linda, uma referência maior do ponto de vista humano e ético, essa pessoa seria o Fernando Lopes.
Sobre o alvo, pois, óbvio.
2. Pedro Borges (PB) e Paulo Banco (PB). Dois rivais, com o primeiro à frente da Midas e o segundo da Leopardo, mas parceiros na Atalanta então, quando estiveste lá. É verdade o que dizem: que PB é melhor produtor/distribuidor/exibidor que PB?
Ahahahahah, cada um com a sua força, o costume.
3. Sabemos que um dos filmes da tua vida é o Two-Lane Blacktop, de Monte Hellman. És do tuning?
Sou do Monte Hellman, do Warren Oates, daquele Thunderbolt azul, da Laurie Bird a cantarolar o I can get no satisfaction!, da cena existencial toda encenada na estrada e na velocidade. A pessoa até se benze. Quase que se fica a respeitar o tuning.
4. Imagina que Gena Rowlands vinha a Lisboa e tinhas a oportunidade mas também a exigente tarefa de a acompanhar durante um dia. A que sítios a levarias (não vale nomeares miradouros nem discotecas com “k” no nome)?
Agora, se calhar, apresentá-la-ia à minha avó, que também tem pinta. Mas, se fosse a Rowlands de há umas décadas, começaria por abrir uma garrafa de whiskey com ela e depois logo se pensava no assunto.
5. Estás na presidência da direcção da AIM – Associação dos Investigadores da Imagem em Movimento. Conheces como poucos o meio académico. Se te chamarmos “académica”, o que fazes: destacas o dedo do meio na nossa direcção, gritas na nossa direcção “vou accionar-vos judicialmente, seus malandros!” ou, pelo contrário, tiras da mala o último livro de Maria do Carmo Piçarra e, enquanto o afagas, respondes: “e com muito orgulho, dass!”?
Ahahahahahah. Assim, mais a sério: sou paga para pensar, falar e escrever sobre filmes. É tudo o que eu quero. O resto é teatrinho. Mas podes ter a certeza que assim que tiver o último livro da Carmo irei acarinhá-lo, sim, que ela trava as mesmas lutas que eu.
6. Além de investigadora e professora és, também, mãe. Como ligas estas actividades? Achas apropriado andares a mostrar os filmes do João Pedro Rodrigues às tuas filhas?
Não estou a parar de rir, credo. Ligo umas vezes pior, outras melhor. Na verdade, não ligo muito a isso… Sobretudo lido com as consequências. É bom, mas é difícil. Sobre o JP Rodrigues, mostrei o filme dos passarinhos, feito agora no confinamento. Mas quando não comem a sopa, claro, falo-lhes n’O Fantasma (2000) a assombrar Alvalade, só naquela.
7. Não é por seres académica (Ups…) que não deixas de ser uma cinéfila, aliás, uma cinéfila bastante atenta ao cinema, em especial ao melhor cinema de autor. Perguntava-te então se tens visto séries na Netflix e qual recomendas para os nossos leitores (especialmente aquela que só começa a ser realmente boa a partir do sétimo episódio da terceira temporada)?
Line of Duty (2012-), todas as temporadas. Mas estou entusiasmada é com a estreia (em Cannes! Ahahahaha!) do F9 (Velocidade Furiosa 9, 2021)! Não é mentira, estou mesmo.
8. Um tema em que tens especializado: a paisagem. Para os nossos leitores perceberem: estudas sobretudo filmes com muitos planos de montanhas, cascatas, prados e vastos horizontes. Assume lá: fizeste mesmo tudo o que estava ao teu alcance para evitares o cinema de Pedro Costa, não fizeste?
“It’s funny ‘cause it’s true.”
9. Por falar em planos de paisagens, foi muito graças a ti que tivemos a oportunidade de conhecer o grande James Benning. Segundo nos recordamos, disseste que ele era “super fofinho”. Mas a sério que querias ser amiga de um tipo obcecado pelo Unabomber?
“Super fofinho” não é bem uma expressão que eu utilize. Mas, em todo o caso, lembra-te que ele fez remakes do Easy Rider (1969) e do Faces (Rostos, 1968)!!!! É todo da paisagem e do tempo, pensa sobre a América através da geografia, não podia ser mais fixe. Somos muito compatíveis. E filma tão bem!! Lembro-me de que ele estava muito afectado pela morte do Cohen, quando cá veio, à conferência do espaço. Quando tive coragem de lhe dizer, assim do nada, que tinha feito teses sobre estes dois filmes, ele disse-me “Then I’m you man!”, e desatou-se a rir. Eu também, claro. Eu não abri mais a boca e percebi que lhe ia achar graça, que ia gostar muito dele, para sempre.
10. Organizaste uma acção de formação gratuita, dedicada a profissionais da cultura, a partir do Instituto do Cinema e Audiovisual, chamada “Programação e Exibição de Cinema”, que esgotou em pouquíssimas horas. Foram hackers russos, ou achas que há mesmo pessoas interessadas em ver e mostrar cinema em Portugal?
Há mesmo, e é importante, e lindo, e de aproveitar e de louvar.