Este ano, entre 1 e 5 de maio, organizou-se em Tui a vigésima (!) edição do Play-Doc, o festival internacional de cinema dessa pequena cidade galega, mesmo junto à fronteira portuguesa, apenas separada de Valença pelo rio Minho. O À pala de Walsh vem sendo convidado a visitar este festival desde 2016, quando Luís Mendonça aí participou do júri FIPRESCI. Em 2022 e 2023 o cinema português esteve em destaque e escrevemos – à distância – textos sobre o ciclo dedicado ao cinema de António Campos e à estreia mundial do restauro digital de Belarmino (1964), de Fernando Lopes. Em 2024 o walshiano Ricardo Vieira Lisboa deu uma saltada à raia minhota e, a partir do que por lá viu nos dois dias em que por lá andou, deixou-nos a seguinte reflexão.
Há umas semanas, numa conversa entre o mítico cineasta guineense Sana Na N’Hada e o jovem realizador Falcão Nhaga (moderada por Maria do Carmo Piçarra na Cinemateca Portuguesa), o segundo fez um comentário sobre a sua relação com o arquivo e o património fílmico guineense que tem reverberado em mim desde então. O comentário é simples e nem sequer é particularmente novo mas, pelo momento, ressoou como antes não o havia feito. Tendo nascido em Portugal, filho da diáspora guineense, Falcão Nhaga nunca teve uma relação próxima com o cinema da Guiné-Bissau. Explicou que a primeira vez que ouvir falar o crioulo guineense fora do circuito familiar aconteceu quando a RTP emitiu Nha Fala (2002), de Flora Gomes. O choque foi alarmante, porque o crioulo nunca havia antes sido uma língua dos espaços institucionais – antes a língua do espaço doméstico, do bairro, da rua (e que era/é ativamente reprimida na escola pública portuguesa). Daí em diante, o jovem realizador foi procurando, aos poucos, descobrir a parca produção cinematográfica do país do seu pai, e essa descoberta foi-se fazendo num permanente estado de confronto com o presente.
O comentário de Falcão Nhaga resume-se, portanto, da seguinte forma: muito embora as imagens e os sons de um determinado filme (nomeadamente de Flora Gomes ou N’Hada) ou documento possam ter sido produzidos há várias décadas, o facto de o confronto com eles se dar no presente, trá-los para a contemporaneidade. O olhar presente da descoberta é, segundo esta perspetiva, um instigador de novidade. Se só nos confrontamos com certa imagem em 2024, mesmo que ela tenha sido produzida há mais de meio século, não nos devemos ficar por um olhar historiográfico que tudo procura contextualizar e rapidamente inscrever numa gaveta do tempo passado. Há que dar àquilo que ficou esquecido a oportunidade de participar do entusiasmo da re-descoberta. Mais ainda quando, de facto, certas imagens e sons ficaram irremediavelmente encafuadas num qualquer saguão húmido da história.
Sirvo-me desta observação de Falcão Nhaga para, através dela, me deixar levar pelo prazer da descoberta que foi a minha recente – e fugaz – ida a Tui e ao seu festival de cinema, o Play-Doc. Já não é a primeira ida, mas a verdade é que a cada viagem a norte (o festival decorre junto à fronteira portuguesa de Valença do Minho, já na Galiza), surge sempre a oportunidade de deslumbre. A programação deste festival sui generis define-se pela convivência daquilo que é novo porque acabou de ser produzido e aquilo que é novo por só agora é dado a ver.
Muito embora tenha uma competição internacional onde concorrem filmes produzidos no ano transato, e uma competição galega de curtas e longas-metragens, o trabalho da programação do Play-Doc floresce verdadeiramente no trabalho em torno de retrospetivas de cineastas que, em muitos casos, acontecem pela primeira vez na Europa – de forma sistemática – e quase sempre pela primeira vez na Península Ibérica. Foi o caso de Leon Hirszman, o realizador brasileiro da geração do Cinema Novo (que faleceu muito jovem, com apenas 49 anos, em 1987), cuja retrospetiva foi a primeira do seu género no continente europeu – muito embora os seus filmes venham sendo mostrados pontualmente, esta foi a primeira vez que a parte mais significativa da sua obra foi apresentada em conjunto. O mesmo aconteceu com as quatro curtas-metragem de David Gladwell (montador britânico que trabalhou com realizadores como Lindsay Anderson, James Ivory e Hugh Hudson), cuja apresentação no Play-Doc foi a primeira mostra dos seus filmes fora do Reino Unido.
Assim sendo, e deixando-me contagiar pelos filmes que me passaram pelos olhos nas 48 horas em que assentei na vizinha Galiza, gostaria de destacar apenas três pequenas curtas-metragens escolhidas por entre as cinco sessões em que consegui mergulhar. A escolha destes filmes prende-se, simplesmente, com os relances da surpresa e os despiques da emoção que me provocaram – além disso, apercebo-me que nas três a relação com a música é central. São filmes que me deixaram fascinado, perturbado, encantado, derreado ou intrigado (por vezes tudo isto em simultâneo). Um dos filmes é de 2024, os outros dois são das décadas de 1960 e 70 – e mentiria se não dissesse que foram os títulos com cinquenta ou mais anos de produção que mais e melhor renovaram em mim o deslumbre cinéfilo – um em particular, que reservo para para o fim deste texto (como quem procura prolongar ao máximo a satisfação de um prazer passageiro), constitui-se como a experiência mais forte de cinema que pude ter este ano – até ao momento.
Trinado melancólico
Comecemos então pelo presente (leia-se, pelo cinema de produção contemporânea) e pelo mais curto dos filmes que vi nesse fim-de-semana galego: Oú sont tous mes amants? (2024), de Jean-Claude Rousseau, filme-haiku de apenas cinco minutos que chegou a Tui diretamente de Paris, onde havia tido a sua estreia no festival Cinéma du réel. Cinco minutos e três planos (na verdade, é sempre o mesmo plano, só que apresentado reiteradamente e com ligeiros reenquadramentos), eis a simplicidade desarmante de mais um dos retratos contemplativos e melancólicos do realizador francês. O cinema de Rousseau é feito da distensão dos tempos, do plano fixo e da concentração dos lugares. Quase sempre feito solitariamente a partir de meios artesanais: ao início os seus filmes eram rodados em Super 8 até que, há uns anos, se entregou ao vídeo e aí persiste. Se na película era o próprio suporte que definia a duração dos planos (um plano, um rolo), com a passagem para o vídeo o esquema formal dilatou-se, mas o sentido de suspensão formal manteve-se. Trata-se, portanto, de um cinema feito da agregação de momentos (ou da variação sobre um mesmo momento), onde a relação com o espaço e com a representação são da ordem da intimidade.
Neste caso, Rousseau dá-nos um plano de um trilho na floresta, à beira de um lago (o lago só será entre-visto na segunda iteração do plano, aquando de um ligeiro reenquadramento). A composição pictórica entende aquele recanto escuro do bosque como uma tela impressionista, onde as folhas de Outono se acumulam pelo chão. Um assobio entoa uma canção. A quem pertence esse assobio? Pouco depois entra em campo um homem – o próprio Rousseau? – que se passeia pelo trilho sombrio, sibilando a tal melodia. A melodia é a figura central deste pequeno filme – repetindo-se, uma e outra vez, como quem não consegue tirar uma canção da cabeça. O homem, de cabelos grisalhos, segue o caminho e afasta-se da câmara, com ele vai também a melodia, ouvida cada vez mais distante. Ele desaparece por entre as ramagens e ficamos a sós com os ruídos do bosque até que, para surpresa geral, regressa, pelo mesmo caminho, trazendo consigo o mesmo trinado. Na segunda iteração – interrompida duas vezes pelo créditos (estamos no território da variação, da fuga musical) começamos por ouvir o assobio sem o seu dono sobre a mesma paisagem, ao anoitecer. A canção extingue-se, a noite instala-se e mergulhamos na terceira iteração, onde resta apenas o homem e o seu passeio ziguezagueante, agora em silêncio. O assobio calou-se, sobram apenas os passos na folhagem. O mesmo trajeto de ida-e-volta, o mesmo local, mas agora fica apenas o silêncio dos homens e os grasnidos dos corvos.
É, como disse, de uma simplicidade desarmante, mas convém dizer que é também de uma simplicidade aparente. O filme chama-se “Oú sont tous mes amants?”, que poderíamos traduzir para português como “Onde estão todos os meus amantes?” ou “Por onde andam todos os meus amantes?”. Esse título, associado à solidão de um homem de meia-idade perdido no bucolismo florestal, carrega em si a força de um comentário sobre a melancolia das paixões que se esfumaram no tempo. Só que o título é, mais do que o seu sentido literal, uma citação a uma canção de 1935 da cantora francesa Fréhel (aliás, Marguerite Boulc’h, aliás, Pervenche). Afinal o tema que o homem grisalho assobiava por entre as árvores sombrias do bosque era esta canção triste de há 90 anos. Que canção é esta? Sem nunca o explicar de forma pedagógica, mas instalando-lhe o temor do subentendido, Rousseau envolve-se na mitologia trágica de Fréhel, uma das mais populares cantoras do entre-guerras que morreria, pobre, sem-abrigo e alcoólica nos anos 1950 – poucos meses antes de cumprir o seu 60.º aniversário. Mais do que uma cantora, Marguerite Boulc’h foi também uma importante atriz (conhecida pelo já citado nome de palco, Pervenche), sendo lembrada pelo seu papel de Tania em Pépé le Moko (1937).
A vida extraordinária de Fréhel – violação, tentativa de suicídio aos 19 anos, inúmeros amantes, álcool, cocaína, uma década na Rússia, etc. – reflete-se, até certo ponto, na letra da homónima canção: “Où sont tous mes amants / Tous ceux qui m’aimaient tant / Jadis quand j’étais belle / Adieu les infidèles / Ils sont je ne sais où / À d’autres rendez-vous / Moi, mon cœur n’a pas vieilli pourtant / Où sont tous mes amants”. Assim, através do título e do assobio, Rousseau convoca todo este estado de alma, toda esta bagagem traumática e todo este desalento. A isto junta-se, ainda, uma dimensão de cinefilia. É que de todas as canções de Fréhel, Rousseau escolheu uma das menos conhecidas. Uma que só havia sido usada uma outra vez em cinema, em Violette Nozière (1978), de Claude Chabrol – uma adaptação do romance homónimo de Jean-Marie Fitère que, para todos os efeitos, inventa uma protagonista (Isabelle Huppert), onde se reconhecem inúmeros ecos da biografia e do espírito disruptivo de Marguerite Boulc’h. Daí que o final do filme de Rousseau, quando se extingue a canção e ficamos entregues aos estalidos secos dos ramos mortos sob os pés do caminhante e aos piares funestos dos corvos, caia com a dor do desamparo, triste e cruel. Que Jean-Claude Rousseau faça tudo isto – um tríptico iterativo de cinco minutos composto por um trilho num bosque soturno, uma melodia sibilante e um sujeito que vagueia solitário – em modo auto-reflexivo afirma a transparência de uma obra que se faz, em igual medida, de total exposição e subtil composição.
Ritornelo bucólico
Se o filme de Rousseau, com cerca de cinco minutos, se estruturava em torno de uma canção (quase reproduzindo a lógica formal das estrofes e do refrão), o segundo filme desta “tripla”, com exatamente nove minutos, funda-se sobre um entendimento musical do cinema. O título do pequeno filme – ao contrário do anterior – pouco ou nada ajuda na sua leitura: An Untitled Film (1964), do já referido David Gladwell. No entanto, a propositada não nomeação do filme antecipa já a rejeição da palavra e da narrativa como critérios de construção. O filme não tem nome – ou tem um “anti-nome” – porque não é ao nível das palavras que ele se consubstancia. Filmado com uma câmara que possibilitava a captura de imagem a alta velocidade – permitindo assim a sua hiper-desaceleração – , o filme de Gladwell (realizado com o apoio do British Film Institute Experimental Film Fund – dedicado a cineastas que procurassem explorar novas técnicas e soluções áudio-visuais) compõem-se como uma série de vinhetas “pastorais” em câmara lenta. Contudo, reduzi-lo a isso é passar ao lado do seu brutal efeito hipnótico e da sua perturbadora violência enfeitiçante.
Para isso, em muito contribui a banda de som produzida por Ernest Berk – bailarino, coreógrafo, ator e compositor alemão que colaborou com Gladwell em vários filmes. Na verdade, no documentário de “denúncia” realizado pelo segundo no ano seguinte, intitulado 28b Camden Street (1965), apresenta-se uma comunidade de artistas cujos estúdios (onde viviam e trabalhavam), situados na referida rua, estavam prestes a ser demolidos pela especulação imobiliária londrina. Um dos artistas que aí vivia era Berk (o mais conhecido dos habitantes dessa rua de Camden era o escultor construtivista húngaro Peter Laszlo Peri, que assume o papel de protagonista e porta-voz no documentário de Gladwell). Pois bem, antes de Berk se afirmar como coreógrafo e performer, iniciou o seu percurso através da experimentação musical, montando um estúdio de música eletrónica em Londres na década de 1960, produzindo, quase exclusivamente, composições para as suas próprias peças de bailado – a propósito, recomendo o excelente artigo de Jack Dangers sobre esta figura enigmática. O que importa notar, ainda assim, é o modo como se estabeleceu entre Gladwell e Brek uma parceria, onde as imagens, os sons e – muito particularmente – a montagem se encontram segundo um entendimento dançante e/ou musical.
As imagens sucedem-se: um jovem camponês entrevisto na fumaça de um queimada de Inverno, uma forquilhada carregada de vides secas, umas patas de cão avançam com ímpeto, um festa no focinho, um jovem assustado entre os ramos de uma macieira, uma galinha de patas para o ar pronta a ser degolada, um aviário, uma mão que estica um pescoço, uma asa que se abre, um alguidar de água suspenso no ar, o mesmo olhar assustado do rapaz, os galhos secos, o músculo hirto do algoz, o rapaz de olhar apático, uma criança que corre na floresta, a suspensão dos gestos – quase imóveis –, um gato furtivo, uns cascos de cavalo, uma ceifeira mecânica, uns grãos de milho pelo chão… Todas as imagens regressam, uma e outra vez, como ecos distantes, como variações musicais (ou coreográficas) de uma mesma frase.
O cão, o cavalo, o rapaz assustado, a matança da galinha, o gato, a folhagem seca: este é o conjunto de temas (há pouco usei a palavra “vinhetas”) que, de forma repetitiva, aparecem e reaparecem. Para cada tropo visual associou-se uma tonalidade musical e os cortes da imagem estão – por vezes – associados a alterações abruptas na composição sonora (mas nem sempre). Por vezes um silêncio agudo infeta as imagens, outras vezes uma gravidade corrompida de reverberações cavernosas, pontualmente instrumentos clássicos intervém (um órgão, um violino), mas a tensão entre ruído e música é permanente e transformadora. A lentidão dos movimentos, que os aproxima de uma gestualidade performativa, sucede-se como um poema barroco em permanente ritornello. Nada faz raccord. Cada corte faz-se por contraste. No fundo, An Untitled Film é um ensaio áudio-visual (na verdadeira acepção da palavra) sobre a violência do mundo rural, sobre a incessante crueldade de uma máquina de morte e destruição montada em torno da manutenção do primado do Humano. Só que essa máquina é, nada mais nada menos, do que o prolongamento do próprio sistema de contrabalanços da Natureza, em toda a sua beleza indiferente.
Os primeiros filmes de Gladwell enquanto realizador haviam sido feitos no contexto do cinema de amadores [e aí exibido – também exibidos no Play-doc, A Summer Discord (1955) e Miss Thompson Goes Shopping (1958)]. An Untitled Film corresponde à sua primeira experimentação com condições de produção profissionais, e o filme carrega a potência desse exercício de descoberta, desse maravilhamento perante as possibilidades do meio. O que surpreende é a extraordinária capacidade de um jovem cineasta em criar imagens perfurantes, que se fixam na retina do espectador, como uma assombração: o olhar daquele rapaz é penetrante, a tatuagem do punhal no braço do açougueiro… An Untitled Film está algures entre o lirismo telúrico de um Terrence Malick e a crueldade niilista de um Werner Herzog, só que montado como se se tratasse de um filme de Artavazd Pelechian. É de uma beleza estarrecedora.
Batucada comunal
E eis-nos chegados ao fim deste tríptico com mais uma curta-metragem, desta feita de pouco mais de vinte minutos. Trata-se de Partido Alto (produzido em 1976, mas só lançado em 1982), um dos vários documentários de metragem curta que Leon Hirszman realizou em torno da tradição do samba (desde as sua origens na batucada baiana) – na sessão de curtas de Hirszman a que pude assistir mostrou-se também Nelson Cavaquinho (1969). “Partido Alto” é – como explica nos primeiros segundos do filme o mestre Candeia, autêntico protagonista e guia moral do filme – a “expressão mais autêntica do samba”. Trata-se de uma forma de musical entretanto caída em desuso onde o samba se aproximava das práticas do improviso musical, algures entre a tradição dos poetas repentistas e as canções ao desafio – poder-se-ia dizer que se trata de uma versão tropical do fado à desgarrada. Assim, os convivas organizam uma roda de samba sem refrão, só guiados pela melodia do cavaquinho e pelo ruído do prato (sim, um melódico prato de louça!). Os sons vão aderindo à composição coletiva e as gentes vão-se apresentando diante do grupo para, dentro da métrica do samba, apresentarem os seus versos: originalmente de improviso, mais recentemente já premeditados.
Leon Hirszman foi um dos membros fundadores do Centro Popular de Cultura, organização artístico-política fundada em 1962, no Rio de Janeiro, que seria extinta dois anos depois, na sequência do Golpe Militar de 1964. O CPC foi um pólo de agregação de intelectuais de esquerda – Hirszman era membro do Partido Comunista Brasileiro – que convocou várias práticas artísticas como o teatro, a música, o cinema, a literatura e as artes plásticas. A função social da obra de arte e a dimensão didática do trabalho do artista eram os valores agregadores deste coletivo, que defendia uma “arte do povo” e uma “sintaxe das massas” – outro dos cineastas do grupo foi o luso-brasileiro nascido em Moçambique Ruy Guerra. Desta cooperativa surgiram várias produções artísticas, entre elas um dos títulos seminais do Cinema Novo brasileiro, a longa-metragem coletiva Cinco Vezes Favela (1962), onde Hirszman assinou o seu primeiro filme – também o vi no mesmo programa de curtas –, o belíssimo Pedreira de São Diogo. Embora de duração breve, o CPC foi fundamental para a formação de estética e ideológica de Leon Hirszman, repercutindo-se por toda a sua obra uma vontade de conciliar simultaneamente as preocupações sociais com a acessibilidade das formas. Se isso atravessa muitos dos seus filmes, talvez nunca antes o tenha sido tão cristalino como em Partido Alto.
Há, neste pequeno filme, um lado desconcertantemente despido de artifícios que emociona pela sua candura. Nos seus 23 minutos de duração contam-se pelos dedos das duas mãos os planos que compõem Partido Alto. Filmado em sequência, com uma câmara que se deixa levar pelo ritmo da roda de samba – mais do que se deixar levar, a câmara integra a roda, participa na dança, gira e deixa-se contagiar –, a duração passa a ser uma forma de entrega à própria experiência repentista, onde o erro, o deslize e a hesitação fazem parte da musicalidade comunal. Todo o aparato cinematográfico é absorvido pelo círculo e o microfone entra em campo desde o primeiro instante – depois da estilização com toques de Welles em Pedreira de São Diogo, Hirszman aproxima-se das mecânicas do cinema direto com a sua curta seguinte (igualmente parte do programa a que pude assistir), Maioria Absoluta (1964) –, depois deste a equipa junta-se à roda, o perchista, o assistente, o próprio realizador, todos aparecem e o cinema revela-se na sua modéstia artesanal.
Não deixando nada nem ninguém de fora (a não ser as mulheres!), Hirszman e o carismático mestre Candeia (sambista cadeirante conhecedor de toda uma tradição oral e de um infindável repertório musical) vão-nos envolvendo numa batida que é, ao mesmo tempo, técnica (como se organiza o partido alto), artística (o que o caracteriza), histórica (quais as suas origens), didática (demonstrativa) e – acima de tudo – lúdica. Tudo isto enquanto o cavaquinho vai sempre tocando, enquanto o prato vai sempre rangendo, enquanto o mestre Candeia vai entoando os seus bordões. Batendo o pezinho (mesmo se sentados na poltrona do cinema) vamo-nos enturmando. Assim segue Partido Alto até que, já bem avançados (e bem embalados), entra uma narração. São três fases apenas, ditas (explicam-nos os créditos finais) por Paulinho da Viola. Contudo, o tom da sua voz doce e melodiosa, a forma como o cinema se impõe perante o registo do real e o modo como se interrompe a pura experiência do samba com uma reflexão que sendo exterior parte da sua vivência, tudo isso, é – pura e simplesmente – um monumento de comoção.
“A roda de partido é um momento de liberdade.” “Quando era menino eu via uma forma de comunhão entre as gentes do samba, era brincadeira e vadiagem, onde todo o mundo participava quando queria e como queria.” “A arte mais pura é o jeito de cada um e só o Partido Alto oferecia essa oportunidade.” Eis as três frases de Paulinho da Viola que me quebraram a compostura. Já não sei quantas vezes as ouvi, vendo e revendo o filme (e mesmo agora, de novo, transcrevendo-as), e sinto sempre os olhos a marejarem-me e o goto a apertar-se-me. Com este final compreendi a estrofe que Candeia canta, logo no início: “Quando o povo samba é forma de oração”. Hirszman conseguiu sintetizar (pela entrega e pela simplicidade) o espírito comunitário da roda de samba do Partido Alto e conseguir tal coisa, através da parafernália mística do cinema, é obra. Além disso, não sei qual o feitiço do realizador, que artes mágicas evocou (mais ou menos ocultas) para o conseguir, ou que fórmulas alquímicas aplicou, mas o certo é que faz agora um mês desde que, no Grande Auditório do Teatro Municipal de Tui, me desfiz em lágrimas de pura alegria musical diante desta obra absoluta do cinema que é Partido Alto. Não há mais nada que possa dizer senão repetir a deixa final de Paulinho da Viola, “Vamo vadiar!?”