What language should we use when we name things?
How does anyone manage to speak at all?
Ariana Harwicz, Feebleminded, The White Review
Do cinema que respira para dentro, são poucos os filmes que chegam até nós. Nascidos de um esforço colaborativo entre artistas que partilham a independência da visão, são filmes que vigoram no circuito de festivais mas falham em encontrar o público depois, no circuito comercial, por não se oferecerem às qualidades do mercado. Que é o mesmo que dizer que falham porque prolongam a experiência do que acaba amplificado na sala de cinema, replicam o contexto e a sonografia e dão à luz um outro ser, mais instintivo, superlativo porque inominável e que se eleva ao estatuto artístico a partir do momento em que existe. De tal forma precioso e, por arrasto, frágil, se tocado por muitos.

Family Portrait (2023), primeira longa-metragem da jovem realizadora Americana Lucy Kerr, é a epítome disto. É tão feliz que o consigamos agora ver, mesmo que só em casa e no Vimeo (onde realizadores como Hal Hartley disponibilizaram os seus filmes ao longo dos anos). Na sua missão de encurtar o caminho para localizar a atmosfera de uma só nota, um sentimento de que algo ou já começou e exerce a sua força sobre nós, ou vem a caminho de o fazer, é um filme que nunca se deixa apanhar e afunda-se mais no que é críptico, e por isso mesmo, coerente, tendo em conta a natureza inexplicável da angústia que o assombra. Algo invisível viaja, transportado pelo ar que abana as árvores durante um verão em família. Em alerta desde a notícia de uma morte na família – “ela parou de respirar”, alegadamente por causa de um vírus -, Katy (Deragh Campbell) vê-se isolada, uma porta aberta entre dois mundos, um corpóreo e um outro mais abstracto, enquanto pergunta pelo paradeiro da mãe, desaparecida sem deixar rasto, e implora para que a fotografia de família, que iria acabar no postal de Natal daquele ano, seja tirada antes de ter que ir para o aeroporto com Olek, o namorado polaco (Chris Galust), de volta para as suas vidas longe dali.
Este retrato formalista move-se sem se mexer. Vive do vácuo elíptico criado pela imensidão do zumbido de ar condicionado, que abafa quase tudo. Distribui-se em forma de haiku, num evidenciar do que é sobrenatural e vive integrado na domesticidade, à la Apichatpong Weerasethakul.
Ao longo de 72 minutos de um sonho febril, Katy não só não é ouvida pela sua família abastada (há vários símbolos classistas espalhados pelo filme – a começar pela empregada interna, pela menção de que Olek não estará na fotografia porque não está ligado a Katy pelo casamento, ou pelo facto de que para a família, a Polónia é um país no leste da Europa, a roçar com a Rússia), como os seus apelos são ignorados, num turbilhão de vozes que parecem desligadas do mundo em que vivem, sempre à beira de extravasar numa e outra conversa sobre uma qualquer temática inerte. O seu desespero não encontra tréguas. Não encontra a linha de comunicação que possa fazer fluir uma qualquer ideia de produção, de movimento, em qualquer um dos humanos à sua volta. Nos outros, vê a capacidade para uma mudez que não consegue alterar, o que exponencia ainda mais a ansiedade. Não há repouso ou catarse. Eis o purgatório, onde as coisas por ver e por dizer são evidenciadas. Sem encontrar as palavras para salientar a urgência sentida, lá aparece o vento e confirma as suas suspeitas.

Durante uma manhã muito quente e lânguida na casa dos avós de Kerr em Kerrville, Texas, este retrato formalista move-se sem se mexer. Vive do vácuo elíptico criado pela imensidão do zumbido de ar condicionado, num trabalho intensivo de mistura de som, que abafa quase tudo e produz paragem, especialmente quando misturado com palavras que ninguém ouve e sons familiares do mundo natural em redor. Distribui-se em forma de haiku, num evidenciar do que é sobrenatural, e vive integrado na domesticidade, à la Apichatpong Weerasethakul. Algo que se animaliza sem alguém estar (ou querer estar) presente para essa mudança, a não ser Katy.
Muito abraçado durante a sua estreia mundial no festival de cinema de Locarno em 2023 onde arrecadou o Boccalino d’Oro de Melhor Realização, Family Portrait falar-nos-á tanto do vírus que assombrou e eventualmente parou o mundo como se não se imaginava possível, como também será preciso sobre a estirpe que afecta uma família quando esta se junta, esse inevitável pull and tug no mesmo lugar, e uma preocupação com os códigos sociais que se mantêm até durante o anunciar da morte. Pensando melhor, invoca um microcosmo para instalar o outro, um mais comum, universal e inespecífico de lugar e tempo, que exemplifica o “agudizar da solidão” de que Daniela Rôla nos fala aqui, normalmente provocado pela quadra natalícia ou qualquer festividade que junte um grande número de pessoas. Ainda que, no filme de Kerr, essa ferocidade é mais cirúrgica devido ao formalismo do exercício e ao facto de que este foi rodado em apenas 10 dias com muitos actores e elementos da equipa a co-habitarem as divisões daquela casa.
Há poucas coisas mais difíceis de navegar do que dinâmicas familiares, onde tudo é tão naturalmente cruel. Pelo caminho, Kerr descaracteriza a representação do Sul dos Estados Unidos que o cinema alimentou durante décadas, e apronta uma aproximação pessoal da única linguagem possível em momentos de paralisação: a performance do corpo no momento da construção da imagem. O congelar da imobilidade quando se está sentado, afundado, numa poltrona confortável. Um corpo que mergulha na água na esperança da fuga do que é herdado, dos ciclos inerentemente humanos e sociais aos quais não conseguimos fugir. O acto de entrar numa árvore e dentro dela encontrar refúgio.

Assim escalda Family Portrait, uma das descobertas incandescentes de 2024, num filme tão intencionalmente oval na sua estagnação. Nunca mergulha ou desce até às profundezas. Permanece à superfície das coisas, e salienta com precisão a fúria associada à repressão emocional e à impossibilidade de a electrocutar. Onde o filme começa é onde acabará, mas renascido, num lugar que é o mesmo, presumivelmente revisto, repensado. Até o esquecimento fazer das suas e voltarmos todos à estaca zero. Faz lembrar o cinema de Ricky D’Ambrose, todo ele feixes de luz e jogos de som, que entoam um mundo sem saída, sobre as ligações de uma vida que nos são impostas, e aquele vai-e-vem que se contradiz. Um querer regressar ao mundo mesmo sem o mundo ainda estar de volta e ser capturado por um terror interior que delimita o percurso, e só consegue fugir de si mesmo por uns instantes, sem abandonar a área geográfica.
É construído do mesmo tecido desconcertante de La Ciénaga (O Pântano, 2001), misturado com o cinema sobre incomunicabilidade de Michelangelo Antonioni a radiar alienação, e mais salgado do que esperado. Uma das descobertas incandescentes de 2024.
Katy fará esse mesmo caminho à procura da mãe. Tirando isso, é uma personagem de quem muito pouco sabemos. Aliás, isso pode ser dito de todos os elementos da família apresentados por Kerr. Só temos a certeza de uma certa postura que se recusa a cooperar, tal como vemos na sequência inicial do filme, com Katy a tentar agrupar todos os membros da família e a falhar, com as várias saídas e entradas daquelas pessoas de campo, cada vez mais dispersados uns dos outros e do objectivo que é tirar a fotografia. Seria este início um prenúncio, uma manifestação do subconsciente de Katy em antecipação do que aconteceria naquela manhã? Em Katy contamos com movimento em torno de si mesmo e sem se afastar do ponto de partida. É construído do mesmo tecido desconcertante de La Ciénaga (O Pântano, 2001), misturado com o cinema sobre incomunicabilidade de Michelangelo Antonioni a radiar alienação, e mais salgado do que esperado.

Algures entre a realidade e alucinação (assim é viver o inexplicável), Deragh Campbell, uma das actrizes mais cerebrais da sua geração, cimenta um papel de uma jovem que por mais que queira fugir daquele lugar, anseia pertencer àquele clã. Talvez por ser mais fácil. Confirma-se isso a cada aniversário, a cada Natal. É mais fácil acenar, agradar, ser aceite, para depois continuar em frente. Ou talvez porque essa é a pessoa que ela é. Seja como for, a sua linguagem corporal é uma de anedonia. Depois de percorrer os vários grupos de pessoas, separadas e espalhadas pela área circundante da casa (rio incluído), resta só ela. E a inundação de questões começa. O que sabemos realmente do que vemos? De que forma é que podem as imagens e os seus enquadramentos falar em toda a sua imobilidade? O que pode uma fotografia para um postal de natal dizer ou esconder? O que podemos descobrir se nunca nos retiramos do lugar onde nos encontramos? Estará Katy acordada ou a dormir?
Com o medo do deflagrar do conflito no centro de tudo, Katy roda em loop até a fonte da sua preocupação se expandir em tamanho e perder músculo, e ficar vincado de que não há nada a fazer. Não há como deter a impermanência das coisas. Não há como unir, realmente unir um grupo de pessoas para que consigam ser o que se intitulam: uma família. Especialmente depois de passarem tanto tempo a entreter apenas a ideia de. Ao primeiro sinal de alarme ou momento de hesitação, fugirão para as suas tocas, incapazes de mostrar as suas verdadeiras caras. No final, é tudo sobre Katy e o som do silêncio que a tolda, com o calor Texano a determinar o seu batimento cardíaco; um mundo “onde a mãe desaparece e deixa no seu lugar os olhos de um monstro que olhou para ela sem a ver”, palavras de um ensaio lido por ela a Olek no início daquela manhã, longe ainda da percepção do que a própria já explicava sobre si mesma, e que por isso mesmo, viria em breve na sua direcção.
Family Portrait está disponível para alugar ou comprar no Vimeo.