Estreia amanhã nas salas comerciais portuguesas, dia 24 de abril (véspera do dia da liberdade e que assinala os 50 anos das primeiras eleições livres), a terceira longa-metragem de Paulo Carneiro, depois de Bostofrio, Où le ciel rejoint la terre (2018) e Périphérique Nord (Via Norte, 2022). A Savana e a Montanha (2024) estreou o ano passado na Quinzena dos Cineastas no Festival de Cannes e, em Portugal, foi apenas apresentado no minhoto Festival Documentário de Melgaço e em sessões ao ar livre na região de Covas do Barroso. Eis a primeira oportunidade para ver, nos grandes centros urbanos, um filme que tem, antes de tudo o mais, uma função social e política: denunciar o crime ambiental que dará origem a uma das maiores minas a céu aberto da Europa, uma exploração de lítio em Trás-os-Montes, numa região denominada de Património Agrícola Mundial pelas Nações Unidas. É, também, o filme que assinala uma transformação estética do cinema do realizador, aproximando-o mais da ficção e retirando-lhe a sua performatividade instigante e a sua estrutura modular que tão fortemente definia os filmes anteriores. A presente entrevista foi realizada o ano passado (faz hoje exatamente um ano), poucas semanas antes da apresentação do filme em Cannes, com vista a integrar o dossiê de imprensa do filme. É aqui publicada pela primeira vez em português.

A Savana e a Montanha descreve a luta de uma comunidade contra a instalação de minas de exploração de lítio na zona do Barroso, no nordeste de Portugal. Sei que tens uma ligação familiar a Covas do Barroso, em particular porque o teu primeiro filme era rodado na aldeia de Bostofrio. Como foste chamado para a luta?
Aquando da estreia do Bostofrio nos cinemas portugueses começaram a aparecer, em várias sessões, ecologistas e até membros de partidos políticos que se opunham à construção da mina. Foram-me contando o que estava planeado para o território. À época, em 2019, sabia ainda pouca coisa sobre o que se passava, eram as primeiras movimentações da empresa [Savannah Resources]. Lembro-me que num desses dias em que estávamos trancados em casa por culpa da pandemia, tive uma enorme vontade de ir até Covas do Barroso e perceber o que realmente se estava a passar. Isto, claro, depois de várias pessoas me pedirem que os ajudasse de alguma forma. Creio que o cinema tem um poder de luta muito substancial…
A forma como descreves a oposição da comunidade contra a empresa Savannah Resources é puramente alusiva: o filme é, ao mesmo tempo, um documentário e um western. Como se chegou a esta forma?
Quando comecei a interessar-me por filmar em Covas do Barroso deparei-me com uma série de pessoas tristes e prostradas. Depois de um par de viagens até lá, decidi virar o jogo e propus-lhes criarmos uma ficção à volta de alguns episódios que estavam a viver. Nesse momento descobri-lhes uma força que não via nos seus discursos nem na sua postura. De repente, parecia que o próprio desafio do filme animou nelas uma responsabilidade; fez com que viessem para a rodagem com ideias e pulso firme. Queriam passar a imagem de um povo lutador. Aliás, foram eles que trouxeram os elementos do western, eu simplesmente trabalhei a partir do que eles me davam. E, claro, quando são eles próprios a encenarem o Barroso como um faroeste é porque têm a capacidade de se rirem de si e da situação frágil em que se encontram.
Entendes A Savana e a Montanha como um filme de intervenção? Isto é, acreditas que o filme (e a sua visibilidade) pode ajudar a alterar as decisões políticas que autorizam a extração de lítio naquela região? É que apesar de alusivo, o filme aponta o dedo aos políticos responsáveis…
Tenho alguma dificuldade em acreditar que o cinema possua a capacidade de mudar o curso das coisas, contudo, esse sempre foi um dos objetivos do filme. Quero trazer a discussão para cima da mesa e dar a conhecer a todas as pessoas o quão pujante é aquele lugar. Lugar esse que está em risco de desaparecer em menos de meia dúzia de anos, se o projeto avançar.

Há um espírito de comunidade que o filme parece pôr em marcha: uma comunidade que se agrega em torno de um projeto em comum (e contra um inimigo comum). Está aí a dimensão política do filme?
Sim, sem dúvida. É por isso que nunca quis fazer um filme de personagens, mas sim um filme coral.
A esse respeito, qual foi o papel das canções de intervenção que se ouvem ao longo do filme? Como foram integradas na narrativa?
Foi extraordinário encontrar o Carlos Libo, ali em Covas. Aos poucos, fomo-lo convencendo a trabalhar connosco, não como músico, mas como ator. Quando estávamos na fase final de montagem, a banda sonora original não estava a funcionar e a solução era tão clara que nem a víamos. Os momentos musicais, que imaginámos sempre como algo pontual, acabaram por se transformar num núcleo narrativo fundamental do filme. Na verdade, isso também tem uma dimensão temporal muito concreta: o filme foi sendo rodado aos poucos e de cada vez que íamos a Covas, gravávamos também algumas canções de intervenção, em vídeo, para partilhar nas redes sociais, de modo a ajudar a luta da comunidade.
Sendo um filme feito em modo de urgência, porque decidiste rodá-lo integralmente em película?
O filme é uma espécie de re-encenação, reinvenção ou mesmo reinterpretação de alguns eventos que se passaram naquela comunidade. A vontade de filmar em película nem partiu de mim, mas do diretor de fotografia [Duarte Domingos]. De qualquer forma, para o filme que queríamos acho que acabou por fazer sentido. O Duarte tinha o material de câmara e conseguimos apoios do laboratório e da Kodak. Filmar em película acabou até por ser mais vantajoso do que filmar em digital, em termos de produção. Gosto de me impor restrições que me obrigam a concentrar e a saber exatamente o que quero filmar e como o quero filmar – em digital ou em película, tanto faz.

Além da dimensão política, há também bastante humor neste filme, logo a começar pelo título (que é um jogo de palavras com a empresa mineradora). Mas o humor está presente também no desempenho dos não-atores e em muitas das situações encenadas. Como foram sendo integrados esses elementos cómicos?
Acredito que para se falar de um assunto sério é necessário usar o humor, e as pessoas de Covas do Barroso têm muito essa ironia que rima com o absurdo do que se está ali a passar. Como é que se pode pensar construir a maior mina de lítio a céu aberto da Europa numa região que é distinguida como património agrícola mundial com selo das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)? Existem apenas 78 regiões, em todo o mundo, com esse selo. Ninguém esperava, do Governo Central, a autorização da exploração mineira numa zona com estas características. Enfim…
Há uma sequência muito forte, composta por uma série de retratos dos vários participantes do filme, cada qual ao volante do seu trator. Até que ponto te pareceu importante, nesse momento, interromper a ficção para nos dares as pessoas?
Sabes, acredito muito na potência do cinema enquanto registo. Tenho pensado muito nisso nos últimos tempos: o que fica impresso, o que nunca morre. Achei, por isso, que seria importante dar ao espectador uma memória do Povo de Covas, um todo composto por indivíduos. Tirámos os retratos para os espectadores possam conservar os seus rostos na memória, mesmo depois de saírem da sala de cinema. Há cenas de filmes que nunca se esquecem. Tentei fazer dessa cena algo memorável e acho que não se pode ficar indiferente.
A Savana e a Montanha é a tua terceira longa-metragem. No entanto, há aqui uma grande diferença de abordagem face aos filmes anteriores. O que havia nesta história que implicou esta transformação do teu cinema? Sentes que houve sequer essa transformação?
Na verdade, a mim interessa-me o desafio e queria arrumar um bocado a ideia de como me poderia desenvencilhar noutros dispositivos. Não sei se se trata de uma transformação porque – a existir – foi algo contínuo. Acho que é essa a lógica de fazer cinema: ter coisas novas para dizer e dizê-lo através de dispositivos que nos desafiem. Divirto-me muito a filmar. Estou sempre a ouvir o diretor de fotografia a dizer que é impossível filmar de determinada maneira. Quando oiço só me apetece inventar mais qualquer coisa para dificultar ainda mais. A minha sorte é que o Ricardo Leal, do som, com quem trabalho há tantos anos, é ainda pior que eu.

O teu próximo filme, que está a ser rodado em Chã das Caldeiras (Cabo Verde), está mais próximo desta nova abordagem, ou regressa ao dispositivo formal dos primeiros filmes?
Não sei, estamos a montar as duas primeiras fases de rodagem, mas falta ainda filmar uma terceira. Acho que o meu processo é de absorção e, como tal, cada novo filme reflete as experiências e as aprendizagens de tudo o que fiz até então. Alegro-me por isso. No próximo filme há, como havia nos anteriores, uma aldeia, carros, luzes, uma cidade à noite e, lá pelo meio, aparece uma história de espiões, para poder falar daquelas pessoas e daquele lugar. No fundo é isso que me interessa, só que é preciso inventar uma forma nova para conseguir contar uma história nova. Para conseguir isso, é preciso trabalhar com as pessoas de modo que elas se inspirem na sua história de vida, para que daí possamos desenvolver um guião em conjunto. É como um jogo de espelhos em que os personagens potenciam uma versão de si através do meu filtro de cinema. O que é engraçado neste método é que, em Chã das Caldeiras, a comunidade acha que sou uma espécie de vidente.