Tinha pouco tempo, talvez uma hora, mas antes de partir queria visitar a Academia de San Fernando, por causa dos Goyas que lá se encontram. Não os podes perder. São, de facto, magníficos — a plasticidade teatral do traço, onde se sente a velocidade da mão do pintor e onde o borrão oscila entre a abstração e o detalhe, onde o grotesco se faz operático e o mundano se faz festa. Contudo, não foram os Goyas que ficaram a ressoar em mim. Numa sala adjacente surge uma enorme tela pintada por Rubens intitulada San Agustín entre Cristo y la Virgen.

O “barbantino” Rubens havia sido enviado para Espanha no início do século XVII (depois de um período formativo em Itália onde se dedica a copiar as grandes obras do Renascimento), onde conhece Velázquez. Uma das suas obras espanholas é, justamente, esta tela que se inspira nos Solilóquios de Santo Agostinho (Agostinho de Hipona), em específico na passagem latina “positus in medio, quo me vertam nescio, hic pascor a vulnere, hic lactor ab ubere”, que pode ser traduzida como “colocado a meio, não sei a quem me dirigir, ou me alimento da ferida [de Cristo], ou bebo do peito [da Virgem]”. Esta passagem é, segundo percebo, apócrifa e a mesma frase foi também atribuída a São Bernardo. De qualquer forma, Rubens entende esta “divisão” de Agostinho à letra, apresentando-o entre duas figuras perturbadoramente eróticas. À esquerda um Cristo musculado e levemente drapejado que, segundo os especialistas, reproduz a postura das esculturas romanas Torso Gaddi e O Sátiro Dançante que se encontram na Galeria Ufizzi e que Rubens terá estudado aquando da sua estadia italiana. Um Cristo sátiro? Sim, um semideus de feições animalescas, de músculos tesos e sedutores — aquela perna, encantadoramente torneada. À direita, a Maria com a mama de fora do decote, o seio entre os dedos, protuberante, oferecido com candura e gozo — o seu rosto, de perfil, esconde uma cativante indiscernibilidade. Entre a chaga sanguinolenta e a teta ejaculante, Santo Agostinho olha os céus e murmura — para onde me hei-de virar?
A biografia de Santo Agostinho justifica esta representação hedonista da religiosidade já que, segundo as suas Confissões, o próprio terá celebrado uma sexualidade rica e variada a partir dos dezassete anos, em Cartago (não por acaso é o patrono dos fabricantes de bebidas alcoólicas e dos filósofos — duas facetas do mesmo ofício). Rubens entende a figura de Agostinho como redentora do desejo e, como tal, apresenta-nos o culto crístico e o culto mariano como metáforas sobre a orientação sexual, ou antes (para não cair no anacronismo identitário do século XXI), sobre a multiplicidade dos prazeres: a reentrância e a saliência, a escuridão e a claridade, o sangue e o leite, o masculino e o feminino. E tudo em complexas combinações, já que o orifício está no torso másculo do Cristo, ao passo que a mama da virgem ganha os contornos de uma flácida pendureza. Agostinho encontra-se diante de um maná erótico e hesita. Para onde orientar a minha devoção, pergunta-se o santo. Rubens fixa esse impasse. E o que é belo, no quadro, é que a escolha não é uma inevitabilidade. Agostinho pode permanecer nesse impasse, ocupá-lo, habitá-lo, vivenciá-lo e — até — exaltá-lo. Pode encontrar na divisão do desejo uma fé multiplicadora. Este motivo será replicado várias vezes em Espanha durante o século XVII, reaparecendo em diferentes igrejas dedicadas àquele santo — em versões quase sempre destituídas de qualquer tensão erótica.
Outra forma de descrever esta dicotomia entre a “mama” e a “ferida” seria dizer que Santo Agostinho hesita (ou divide-se) entre o riso e a faca. O título do filme de Pedro Pinho apropria-se da canção homónima de Tom Zé — que o filme faz questão de colocar, a dada a altura, para que se explicite o sentido oculto do seu título —, canção essa em que o cantor brasileiro demonstra a sua vontade de ser “o riso e o dente” e depois “o dente e a faca”, e logo “a faca e o corte” para então ser “um só beijo vermelho”. Aí, na primeira quadra, faz-se a ligação associativa entre o “riso” e o “corte”, culminando tudo num “beijo vermelho” de desejo. Muito possivelmente Tom Zé não estava a pensar em Santo Agostinho, mas sim na famosa passagem de L’Heautontimoroumenos (de As Flores do Mal), o poema de Charles Baudelaire, donde se extraiu “Eu sou a faca e o talho atroz! / Eu sou o rosto e a bofetada! / Eu sou a roda e a mão crispada, / Eu sou a vítima e o algoz!” (na bela tradução de Ivan Junqueira). Sendo que, por sua vez, talvez Baudelaire tivesse Santo Agostinho em mente.
Se é certo que a divisão multiplicativa da fé proposta pelo santo se relaciona com as contradições do objeto de devoção do catolicismo (e a sua desmultiplicação em diferentes entidades todas elas igualmente divinas — desmultiplicação essa que está na génese dos primeiros concílios, nos séculos IV e V), já o jogo de paradoxos proposto por Baudelaire enquadra-se no contexto ambivalente em que se integra o artista no período romântico, uma posição de reflexão e sensibilidade. Tanto um (Agostinho) como outro (Baudelaire) foram adotados pelos criadores da modernidade, já não como exposição dos paradoxos da fé ou da existência, mas de forma dialética, como realidades conviventes — e sem contradição. A propósito, na véspera de ver o filme de Pedro Pinho revi na Cinemateca Bara No Sōretsu (“Funeral Parade of Roses”, 1969), o filme em que Matsumoto começa, justamente, por citar a referida passagem de Baudelaire — citação essa que serve de sinopse para a vivência das suas personagens, também elas entre géneros (masculino/ feminino/ …), como também o cinema de Matsumoto está entre géneros cinematográficos (documentário/ ficção/ …). Pedro Pinho parece absorver todas este percurso decantado de pensamento, fazendo do seu desaguar um elogio da dispersão.
De facto, o filme de Pedro Pinho (e o filme de Matsumoto, e o poema de Baudelaire, e a canção de Tom Zé e tantas outas coisas) ecoava no meu espírito quando, diante daquela tela de Rubens, creio ter encontrado uma síntese daquilo que o realizador português procurou fixar ao longo de mais de três horas (mais de cinco na versão “integral”). A personagem de Sérgio — como Santo Agostinho, como o sujeito poético de Baudelaire, como Tom Zé, como Eddie de Matsumoto — vive essa mesma indecisão, essa mesma indecidibilidade. Aliás, Pedro Pinho faz dessa indecisão (ou antes, dessa disponibilidade) um método narrativo. O Riso e a Faca é um filme que, centrando-se numa personagem, procura descrever as suas hesitações (entre os prazeres, entre as culturas, entre as línguas) e, de forma metonímica, também o filme hesita, também ele oscila entre tonalidades, entre esquemas narrativos, entre formas de representação, entre modos de contar e de mostrar.
O método de Pedro Pinho, pelo menos desde A Fábrica de Nada (2017), tem sido o da agregação. Primeiro numa fase de escrita, onde várias pessoas (de diferentes contextos) contribuem para o delineamento da(s) linha(s) narrativa(s), depois, na rodagem, em que tudo isso é desfeito e refeito ao sabor daquilo que é a realidade das coisas que acontecem diante da câmara. É um cinema sem mapa, que se aventura em torno de personagens de papel que, aos pouco, vão ganhando a carne dos seus atores, a espontaneidade dos seus comportamentos e a textura dos seus contextos. Mas, ao contrário de A Fábrica de Nada, que fazia da dispersão formal e narrativa o sinal da sua assinatura coletiva, em O Riso e a Faca a grande surpresa é que, apesar desse desejo agregador, o realizador conserva a certeza de um protagonista — o referido Sérgio — que atravessa, liga e cose a manta de retalhos que é o filme. É um alter ego não tanto do realizador, mas do olhar europeu sobre África, e em particular sobre a Guiné-Bissau, onde decorre a ação. Embora a câmara se autonomize dele (e raramente se subjetivize), ele está sempre — ou quase sempre — presente. Esse eixo garante que a ambição desproporcionada (e algo desgovernada) do projeto se sustenha. É ele, ou antes, o seu olhar, que suporta o filme, que o orienta e que — mais importante — permite que este se transforme, se metamorfoseie à medida que o tempo avança, que as personagens se abrem ao seu redor e que as possibilidades narrativas se revelam e encerram. É por haver a continuidade daquela personagem que o filme pode começar como travellogue pelo deserto da Mauritânia, saltar para o naturalismo de um estranhamento cultural, desenvolver-se numa espécie de sátira de costumes (com a luta de classes em surdina), saltar para o festival erótico/exótico de cores e sabores da novidade, converter-se, subitamente, numa espécie de teatro do oprimido onde se expiam os males dos desterrados, regressar à pedagogia dialógica sobre os ecos do passado colonial e as suas reverberações contemporâneas para, por fim — num golpe de asa que salva o filme — se converter num levantamento antropológico (quase filme-científico, quase etnográfico), que corta as amarras afetivas do protagonista, como que lhe oferecendo um reinício.
Para que tudo isto seja possível, a personagem de Sérgio é — ao contrário daquelas que o rodeiam — um prolongamento do próprio gesto cinematográfico. Ou seja, Sérgio é simultaneamente uma figura da máxima disponibilidade (ele olha tudo, conversa com todos, aceita todos os avanços, responde a todos os desafios) e da máxima suspensão (todos o acolhem e rejeitam, todos os chamam e rechaçam, todos o convidam e logo o renegam). Sérgio vai sem atirado para um lado e para o outro, deixando-se levar pela força da corrente, alegre por que ter que tomar uma decisão, feliz por poder viver entre uma margem e outra do rio (o riso e a faca), balouçando para cá e para lá (a ferida e o peito), sem rumo definido, mas sempre para jusante. Sérgio é o filme. Ou antes, o filme é Sérgio. E como tal, O Riso e a Faca, como o seu protagonista, é um filme cheio de vontade de se entregar à Guiné-Bissau e às personagens que a compõem e que, uma e outra vez, sente a recusa, ou melhor, o incómodo da sua entrega. Numa cena particularmente exemplificativa do filme, Sérgio chega a casa de Diara para lhe pedir um chá (e companhia) e pergunta-lhe, ainda sob o umbral da porta, se está a interromper. “Não estás propriamente a interromper…” suspira ela, quando para o estava a fazer para lhe dar atenção (para logo o despachar com uma desculpa esfarrapada). Sérgio é uma personagem interrompida e que interrompe (e que, por vezes, irrompe também) e, como tal, também o filme faz da interrupção, do adiamento e da suspensão um método. Isso é narrativo, mas é também — como o Santo Agostinho de Rubens — sexual. Sérgio excita-se com tudo e com todos e tudo e todos dão-lhe a promessa de um gozo permanentemente adiado. É esse ímpeto, essa insatisfação, essa tensão sexual por resolver que faz avançar a personagem e o filme. E, não por acaso, tudo termina com Sérgio a comer uma jaca, isto é, com o protagonista a comer, depois de mais de três horas em que havia sido comido, ou antes, em que lhe haviam andado a comer as “papas na cabeça” (recorde-se que Diara e Gui fazem uma aposta sobre quem será o primeiro “a comer a comida” e, adiante, a sequência de confronto com os empreiteiros se faz por causa daquilo que Sérgio guardou na arca frigorífica onde se conserva a comida — o que acaba por invalidar a patuscada — sequência essa que termina no bordel onde, mais uma vez, se adia o “comer”).
O referido método de Pedro Pinho passa, então, por trabalhar o edging narrativo como o edging sexual, provocando o protagonista (e o espectador) e adiando, sistematicamente, a sua satisfação. Não se trata sequer de coito interrompido porque nem sequer chega a haver coito, apenas longos preliminares. Pelo menos durante as duas primeiras horas, até que — por fim — Pedro Pinho lhe dá (nos dá) uma das melhores cenas de sexo do cinema português. E é a partir daí, já satisfeito, que o filme se reinventa pela via etnográfica, e se lança por outros caminhos, para fora dos espaços urbanos. É o adiamento que provoca o fulgurante orgasmo que essa cena apresenta e representa e, depois, o filme espraia-se, relaxado, na antropologia visual. E nós, de cigarro na mão, deixamo-nos adormecer no seu peito.
★★★☆☆
