Do Norte de Espanha, algures no coração de Castilla e Léon, onde as Primaveras e os Invernos têm a força de comandar acontecimentos e destinos, os rios ditam contendas e as montanhas são a Terra Prometida, revelam-se-nos os homens e as mulheres que têm que domar a Natureza e atravessar território bravio e selvagem para sobreviver. Parece não haver dúvidas, Orgullo (1955) é um western. O ponto de partida são as tensões que renascem e se reacendem entre duas famílias pelo acesso às águas dum rio. Tensões ferozes. Tensões antigas. Se fosse só isto, talvez nada fosse, mas a câmara de Mur Oti fá-los merecer tanto a terra como esses sentimentos e pinta um imenso fresco de demarcações apaixonadas e movimentações em massa pela paisagem, movimentações e êxodos só vistos assim em The Big Trail (A Pista dos Gigantes, 1930) de Walsh, Red River (O Rio Vermelho, 1948) e The Big Sky (Céu Aberto, 1952) de Hawks, 3 Bad Men (Três Homens Maus, 1926) e Cheyenne Autumn (O Grande Combate, 1964) de Ford, The Winning of Barbara Worth (A Flor do Deserto, 1926) e Captain from Castille (Capitão de Castela, 1947) de Henry King, Bend of the River (Jornada de Heróis, 1952) de Anthony Mann ou Heavens’s Gate (As Portas do Céu, 1980) de Michael Cimino.
O filme começa com a chegada de Laura (Marisa Prado) da cidade. É apresentada pela mãe, Teresa (Cándida Losada), às responsabilidades da fazenda e às imensas e belas terras que possuem ao redor dela, separadas do resto da povoação por estacas afiadas e lancinantes. Pelo caminho, encontram Luis de Alzaga (Enrique Álvarez Diosdado), patriarca da fazenda do outro lado do rio. A partir desse momento, ficamos já com a impressão que as tensões não são tão simples como parecem. O que se diz não é dito com o tom de quem se odeia, mas com o de quem se ama. Ou de quem muito se amou. À chegada à fazenda da mãe, Laura entra em confronto com os planos dela, por lhe parecerem arcaicos e batidos. Chegou da selvajaria da civilização e só aqui começa verdadeiramente a sua educação (e quanto cresce ela desde que a vemos chegar ao Norte de Espanha até liderar homens, mulheres e crianças, montanha acima). Quando a mãe lhe explica os seus motivos, esquece as lições da sociedade civil ou da opinião pública ou da lei do Mercado e do saneamento regional e abraça a mãe e a terra. E quase ninguém quer acreditar que na terra há pessoas como na cidade há muito poucas – chamam-lhes loucos, chamam-lhes eremitas, chamam-lhes intratáveis, inabordáveis. E quase ninguém quer acreditar que não há mais saloios na terra do que na cidade, que não é verdade, em absoluto. E de quem não acredita – nem quer acreditar -, como disse Tommy Lee Jones dia 18 na sua conferência de imprensa em Cannes, para apresentar o seu novo filme: “we get a glimpse of how uncivilized civilization can be”. Michel Giacometti, Fernando Lopes-Graça, António Reis, Margarida Cordeiro e Manuela Serra souberam-no. Que é lá na terra que a memória é ente vivo, que é lá que estão os seres extraordinários que, serenos, resistem perseverantemente aos vagões insaciáveis dos tempos… Ainda hoje.
Mas voltando a Mur Oti, que também o soube, cineasta marcado por razões políticas mascaradas com desculpas estéticas, como os americanos Cimino, John Milius ou como os franceses Leos Carax e Jean-Claude Brisseau, como quem se preocupa pelo que faz e não por que círculos frequenta. Se era de esperar que o preconceito dos primeiros críticos de Manuel Mur Oti fosse ultrapassado pelas gerações seguintes, o caso não se deu e o que se seguiu foi a preguiça destes, que por acharem que os primeiros deviam ter razão nem se deram ao trabalho de ver os filmes em questão e encheram dicionários de cinema com insultos e falsidades de todo o tamanho. Felizmente, houve quem quisesse ver por si próprio e devemos a Miguel Marías este interesse renovado pelo cinema de Manuel Mur Oti. Uma vénia.
E se a Miguel Marías se deve isso, deve-se a ele também uma citação (duas, primeiro sobre Mur Oti, depois sobre Orgullo): “o cinema de Mur Oti pouco ou nada tem a ver com o dos seus contemporâneos, entre muitas outras coisas porque a sua vasta cultura não é exclusiva nem primordialmente cinematográfica, mas antes literária e teatral, histórica e, sobretudo existencial: quase tudo o que se possa encontrar na sua obra, manifesto ou latente, deriva da sua experiência vital, daquilo que fez e aprendeu; do que viu e lhe narraram nas suas viagens, mais ainda do que daquilo que possa ter lido ou lhe possam ter ensinado. Essencialmente auto-didacta, estudando por sua conta e sem se guiar pelos programas oficiais, fazendo as suas habilidades nos ofícios mais impensáveis (além de começar e não acabar o curso de Direito, como tantos cineastas e artistas em geral) e podendo considerar-se perito nas actividades mais insólitas (da criação de gado à contabilidade, passando pelo fabrico de vinho e açúcares), Mur Oti aprendeu a fazer cinema, antes do mais, vendo e imaginando de outra maneira – a sua, sem dúvida – os filmes que contemplava quando a sua mãe o levava ao cinema (dos que se lembra, sobressaem os melodramas “realistas” mudos de Francesca Bertini; numa segunda fase, já destro escritor e dramaturgo de êxito, aventurou-se a fazer guiões, realizados, na sua maior parte, pelo seu amigo Antonio del Amo, aplicando-se com afinco à escrita e submetendo-os a uma contínua revisão mental; numa terceira fase, a procura de um sócio capitalista para a produtora Sagitario Films, leva-o a indagar e calcular os custos necessários de um filme, com o objectivo de elaborar um orçamento ajustado que permitisse o seu financiamento; numa quarta e definitiva fase, estudou sozinho, intensivamente, todos os manuais e tratados de óptica que pôde arranjar, antes de chegar à fase de realização, chegando ao extremo de desmontar e remontar a câmara para ter a certeza de que conhecia a fundo os novos instrumentos com que passaria a exprimir-se”.
“(…) Um dos aspectos mais gratamente surpreendentes de Orgullo reside no facto de cada sequência ou cena, cada frase ou gesto, cada plano ou movimento de câmara, cada decisão de iluminação ou enquadramento são rigorosamente necessários, precisos e coerentes, de tal modo que não existe desequilíbrio algum, e todas as peças encaixam umas com as outras com a precisão de um mecanismo de relojoaria. O facto que isto só se possa verificar após múltiplos visionamentos, ainda que se intua desde o próprio início do filme, aumenta o mérito do trabalho de Mur Oti e seus colaboradores, porque demonstra que não faz alarde da sua capacidade e que conseguiu evitar que o funcionamento do filme seja mecânico ou enferme de rigidez.”
Entre o que pude gravar na memória por não ter ainda os múltiplos visionamentos do filme que são necessários, mas apenas um, permanecem os encontros de Laura com Enrique (Alberto Ruschel), filho de Alzaga, à beira-rio; o cúmulo dos desentendimentos entre mãe e filha pelo abate do gado quando as vacas passam as estacas de uma ou outra fazenda, e que se dá nessa chapada terrível mas muito precisa à frente de todos e depois, à noite, num acordar milagroso, a ida lenta de Laura à janela enquanto se canta a canção sobre o rio e ela ouve a estória de cada um dos seus encarregados e começa a entender tanto o que está em jogo, como o cuidado que é preciso ter para levar de vencida a fome e as guerras; a subida e a travessia pelos montes nunca atravessados e que são, acredita-se, a solução para todos os males; a queda brutal de uma carroça pelo monte abaixo e a demonstração horrível de como não é tarefa da qual se saia sem marcas; a chuva maravilhosa que leva tudo e todos ao êxtase tão merecido e as silhuetas belíssimas de Laura e Enrique no final do filme.
Sem ter dito absolutamente nada, mais uma vez, dou a palavra a quem sabe dizer e fez com que se publicasse o livro de Miguel Marías de onde vêm as citações anteriores, Manuel Mur Oti – Las Raices del Drama, além de organizar a retrospectiva Mur Oti, entre Maio e Julho de 1992, na Cinemateca Portuguesa. Nem mais, João Bénard da Costa: “(…) Não sei se conheci a melhor cabeça de Espanha. Mas conheci, de certeza, um dos melhores cineastas. Aceito perfeitamente que não me acreditem. Não viram, como eu vi, Susana Canales na verbena, às voltas na Grande Roda, entre foguetes de fogo de artifício, convencida de que tinha encontrado o grande amor da vida dela, antes de começar a trovoada e de ficar sem home, sem óculos e com o vestido estragado [Cielo Negro (1951)]. Não viram como eu vi, Aurora Bautista fundindo-se com o marido que matara por ciúmes dela, a dizer-lhe que os olhos dela, a boca dela, a carne dela, eram os olhos, a boca e a carne dele. E, depois, a condenar-se, como ele, no fundo de um desfiladeiro, enterrando até ao fundo uma faca no corpo do homem que a amara [Condenados (Condenados, 1953)]; não viram, como eu vi, Marisa Prado à desfilada, atravessando a ponte, sinal da ancestral divisão das terras de duas famílias separadas por ódios seculares (Orgullo); não viram, como eu vi, Emma Penella, moderna Fedra, afogar-se no Mediterrâneo, agarrada ao corpo do homem que a rejeitara e que era o filho do marido [Fedra (Fedra, 1956)]; não viram, como eu vi, todas essas actrizes reviverem os esgares e os paroxismos de Jennifer Jones, em filmes tão telúricos como Duel in the Sun (Duelo ao Sol, 1946) ou Ruby Gentry (A Fúria do Desejo, 1952).”
“(…) Não é todos os dias que se descobre um cineasta”.