Ne touchez pas la hache (Não Toque no Machado, 2007) é a terceira adaptação que Rivette faz de livros de Honoré de Balzac, a seguir a Out 1: noli me tangere (1970) baseado em Histoire des Treize e La belle noiseuse (A Bela Impertinente, 1991) que adaptava Le Chef d’Oeuvre Inconnu. Pode-se partir daqui e dizer que os jogos de Balzac são perfeitos para a “filmagem do trabalho” e para os jogos de interpretações de Jacques Rivette, pode-se dizer realmente muita coisa. Só que como esses jogos discursivos normalmente nos fazem esquecer da veia narrativa e emocional do labor do realizador, tornando-os em coisas austeras e difíceis quando se calhar o não são, e como não há conhecimento suficiente da obra de Balzac por parte de quem escreve estas linhas para confirmar isso, vai-se aqui tentar ir por outro lado.
Godard disse uma vez que “escrever já era fazer filmes”, como Rivette escreveu na sua crítica a Sommarlek (Um Verão de Amor, 1951) de Ingmar Bergman no Cahiers nº 82 que “a única crítica verdadeira a um filme só pode ser outro filme”. Sobre Angel Face (Vidas Inquietas, 1952) de Otto Preminger, Rivette falava de ideias precisas de cinema e mistérios que não nasciam de argumentos porque havia outras forças a prender-nos aos gestos dos personagens. Não escrevendo críticas, fazem-se filmes que nos lembram dessa expressão já tão usada e mal usada (agora perigosa) mas que com Rivette há-de envolver todos esses mistérios e todos esses segredos e todo esse respeito tão merecidos: mise en scène. Só acha que este filme é uma tradução literal do livro de Balzac quem não quiser ver o trabalho, as escolhas e as pontuações do francês ao longo deste conto de amores impossíveis, melodias belas e desoladoras e actores monstruosos. Colossos. Repetir diálogos integrais do livro, repetir situações e espaços só prova mais uma vez que nisso ele estava certo. Há outras forças. Forças que evitam o ter que se estar a mudar o sentido das palavras só porque se está a fazer um filme mas que não evitam o ter que se escrever com a câmara. E isso é o cabo absoluto dos trabalhos.
É por conhecer o Duchesse de Langeais de cor que Rivette consegue contar esta estória como aqui a conta. A sequência que melhor ilustra todas essas forças é a da dança das quadrilhas, mas que só funciona com tudo o que atrás disso se viu. O Montriveau de Guillaume Depardieu diz à duquesa de Balibar que até ao fim do dia algo terrível lhe vai acontecer. Ela ignora o aviso com risos e desdéns falsos e quando a vemos a dançar com um olhar terrível, percebemos. Amar tão tarde e pela primeira vez é um desastre sem tréguas. Ele, pelas aventuras além-mar, e ela, pelo casamento de conveniência, nunca conheceram o amor verdadeiro, e quando o conhecem batem-se por orgulho, conveniências, sinceridade, aparências, violência e distâncias seguras. Vem ele de desertos e suplícios de morte e não está pronto para os jogos de sociedade desta duquesa, está esta licenciada com distinção nas artes das aparências e não está pronta para tanta bruta sinceridade. Vermos isto assim, dentro de quartos e divisões que marcam fronteiras e trincheiras como na guerra e povoadas por actores que se sabem mover em plano como ninguém, e não precisamos de mais nada. Só que temos. Temos a introdução ao som de gaivotas e órgãos do convento das Carmélites na ilha de Maiorca e os travellings pelas tapeçarias da igreja até às cortinas (que voltarão mais tarde no filme) e às grades que nos fazem adivinhar nada mais que tragédia. Como ouvimos também a Fleuve du Tage – canção triste, triste -, alguém dizer que a França está em todo o lado e vemos Depardieu sair de rompante da igreja e das suas memórias. Talvez da própria canção e do verso que diz “Hélas! Je veux vous quites pour jamais”, ou talvez de si próprio.
“O coração pesa a queda de um Império de catorze anos e o cair de uma luva de mulher nas mesmas escalas, e a luva é quase sempre a mais pesada dos dois”, escreve Balzac. Rivette mostra-nos qual é a potência destes pesos com a tímida invasão de Armand Montriveau às graças e aos amores da duquesa de Langeais, primeiro satisfeito com uma conversa, depois com um encontro na sala de estar, com um beijo na mão, e por fim já insaciável. Antes o deserto e a sede, as bolhas e o sangue nos pés do que a agudeza de mulher da duquesa, do que esta outra sede contida, prolongada e arrastada a passo de caracol. Os olhares destes dois são qualquer coisa de insuportável, neles se trava tudo, neles se revela tudo, neles se vê mais do que mil beijos ou mil carícias nos mostravam. E o Império, cai nas danças das quadrilhas, quando Antoinette tem que pousar a mão em móveis e abraçar colunas para se aguentar em pé? Ou quando vê as cartas fechadas que Armand não leu e não quis ler? Se calhar é mesmo no corte para negro final, quando um dos amigos convence Armand a esquecer tudo a bordo do barco e o espectador é surpreendido e obrigado a projectar toda essa tristeza na sua consciência e no seu olhar.
Filme que começa e acaba no mar, sobre um homem que foi como um rio chamado Tejo para uma mulher, levando-a a ela e a si à loucura, nem lá no mar consegue paz. “Em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia, e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou!”, como gritava José Mário Branco no seu FMI. Há filmes que dizem que a Natureza é superior ao homem e há outros, que não dizem o contrário mas sim que não há natureza que apazigúe certos fantasmas nossos. Como me diziam e muito bem há uns dias (falando-me também depois de um discurso de Faulkner, mas também já lá vamos), câmara à altura do homem é qualquer coisa de mais intrincado que só uma questão de ângulo – o do nível do olhar -, tem que ver com o seu potencial, com a sua força. Mas sem gritar aos quatro ventos que o homem é o princípio e o fim de todas as coisas. Não, não tem que ser isso nem pode ser isso. Basta acreditar que caindo o Império, desabando tudo, “when the last dingdong of doom has clanged and faded from the last worthless rock hanging tideless in the last red and dying evening, that even then there will still be one more sound: that of man’s puny inexhaustible voice, still talking.”, como diz Faulkner.
Fica talvez um poema, um livro ou um filme. E através deles a lembrança e o testemunho de vidas maiores que a própria vida. No Faoubourg Saint-Geirman ou na varanda monumental das Carmélites, a olhar o mar e o horizonte…