E como é bom regressar aos filmes com mais títulos que planos, aos contratos assinados em guardanapos, às filmagens à socapa nos Estados Unidos, aos processos judiciais por direitos de autor, à exploração exaustiva de géneros, aos actores e realizadores com pseudónimos, às triplas ou quádruplas filmagens paralelas, às bandas sonoras mirabolantes de um Francesco de Masi ou de um Riz Ortolani e à terra e aos destroços onde os “Bastards are a race apart, goddamn hard to kill…”, como diz Henry Silva na sequela deste 1990: I Guerrieri del Bronx (1990: Os Guerreiros do Bronx, 1982), Fuga dal Bronx (A Batalha de Bronx, 1983). O género diz-se ser o postatomici, a que Castellari regressou com I Nuovi Barbari (Os Implacáveis Exterminadores, 1983), feito entre os dois filmes do Bronx, mas que também viu exemplares feitos por Lucio Fulci ou Sergio Martino, entre muitos outros. Mas, para Castellari, foi só uma desculpa para fazer mais westerns, como tinha sido o poliziotteschi (“trocam-se os cavalos e os revólveres pelos carros e pelas metralhadoras“, nas palavras do próprio). E foi ele quem melhor os fez.
Desde muito novo que Enzo Girolami Castellari está ligado ao cinema, através do pai, Marino Girolami. Como explica na entrevista concedida nos anos 90 a Peter Blumenstock e Christian Kessler, “mesmo no começo, era actor. Só tinha 5 ou 6 anos na altura. Sempre que estava de férias da escola, envolvia-me em produções de filmes. Foi um tempo maravilhoso para mim. Sempre fui muito bom em desporto, portanto mais tarde comecei a trabalhar como duplo em diversas produções. Como devem saber, o meu pai era um campeão europeu de boxe, portanto eu e o irmão Enio interessámo-nos por desporto desde muito novos. Eu fiz o trajecto habitual dos realizadores italianos. Tornei-me assistente do assistente do assistente e subia a escada a cada nova produção. Quando me tornei primeiro assistente do realizador, trabalhava como director de montagem ao mesmo tempo. Estava motivadíssimo e era curioso por aprender tanto quanto fosse possível sobre todos os aspectos técnicos do cinema, uma vez que compreendi muito cedo que se tem que saber como um filme deve ser montado para se ser um bom realizador”. É então este percurso pela escada que o conduz a Pochi Dollari per Django (Poucos Dólares por Django, 1966), de que realiza algumas sequências, e Sette Winchester per un Massacro (1967), primeiro filme a solo e que marca o início da sua colaboração com o compositor italiano Francesco De Masi. Westerns, como Quella Sporca Storia nel West (1968), elegantíssima variação do Hamlet de Shakespeare.
O que mais impressiona em Castellari, particularmente em Sporca Storia, Keoma (1976), Quel Maledetto Treno Blindatto (1978), os dois filmes do Bronx e o tardio Jonathan degli Orsi (1994), é mesmo a elegância visual (há ideias belíssimas de composição espalhadas por todos estes filmes) e o sentido económico (já Allan Dwan dizia a Peter Bogdanovich que “a arte é económica, gastar-se milhões de dólares arruinou completamente o negócio do cinema”). Uma inteligência que o aproxima do Jack Arnold de Creature from the Black Lagoon (O Monstro da Lagoa Negra, 1954) e do Edward Ludwig de The Black Scorpion (1957), o primeiro postatomici, para não citar Carpenter e os suspeitos do costume. E, dando agora a palavra a Fred Williamson (que também trabalhou com Arnold), falando sobre os produtores americanos, “eles acham que um tipo que faz filmes de baixo orçamento não pode fazer filmes de grande orçamento. Mas isso é estúpido, é exactamente ao contrário, os tipos que fazem filmes de grande orçamento não têm a mais pequena ideia de como se faz um filme de baixo orçamento. Se há uma cama e duas cadeiras e o guião pede uma cama e nove cadeiras, eles não sabem como fazer essa mudança. Esperam, empatam, ‘Quer dizer, gastem dinheiro, tragam mais oito cadeiras, temos que ter aqui nove cadeiras’. E o realizador de baixos orçamentos diz, ‘Não, hey, nós conseguimos fazer isto, trazemos aquilo para aqui, conseguimos fazer aquilo parecer ter nove cadeiras, podemos pôr aquela ali e pendurá-la aqui. E quando filmarmos naquele lado do quarto, pegamos nas mesmas duas cadeiras e pomo-las deste lado do quarto, filmamos naquela direcção e assim temos quatro cadeiras…”
No primeiro filme do Bronx (como no segundo, e talvez nesse até mais, mas ficará para outra altura), Castellari dá uso a todo o seu talento, estendendo a acção e inscrevendo quase uma anatomia do género. Porque, por muito que estivesse por cá para se divertir, Castellari sabia mesmo como montar uma cena. Inventava pelo caminho, certo, mas ia para a sala de montagem todos os dias a seguir às rodagens e tinha as coisas planeadas de antemão e por isso é que, por todos problemas de calendários, actores ausentes, cenas filmadas alternadamente entre dois continentes, entre muitos outros problemas, o tempo e o espaço são tão precisos nos seus filmes. Olhe-se para uma das primeiras cenas, quando Ann (Stefania Girolami, filha do realizador) chega a uns claustros durante a noite e é abordada pelo gang dos skaters, e quando vemos Trash pela primeira vez. As sombras ameaçadoras nas paredes, os raccords exemplares, a chegada dos Riders e a batalha pelos olhos de Ann. Mais uma vez, Castellari: “Tudo pode ser resolvido com saber técnico. Tem que se saber o que é uma câmara e qual vai ser a aparência da batalha depois no grande ecrã. A preparação não é sempre a mesma, mas depende de onde se põe a câmara. Também penso que o talento ajuda com certeza quando se filmam cenas de acção. Muitos realizadores têm medo destas sequências e põem a câmara no canto, simplesmente. Isso é muito aborrecido. Temos que conhecer bem o nosso trabalho, onde pôr a câmara, quando se tem que fazer um corte e, claro, tem que se pensar antes das rodagens sobre o que se quer, e não depois, na sala de montagem. Eu normalmente filmo estas cenas com duas câmaras e mudámos-lhes as posições para cada novo take. Leva muito tempo e é bastante difícil mas acho que é a melhor maneira de as fazer.“
Logo a seguir a esta cena, vem o encontro na ponte, talvez o cume absoluto da arte de Castellari. Quando, durante a pré-produção, chegaram lá para escolher locais para a cena, o realizador viu um homem a tocar desenfreadamente numa bateria. Quando depois foram lá filmar, não o viram e a produção, a pedido de Castellari, também não o conseguiu encontrar. Por isso, pediu a alguém da equipa que soubesse tocar bateria para tomar o seu lugar e, como alguém que sabe que a realidade é mais estranha que a ficção, simula aquele encontro estranhíssimo em que a bateria, imperturbável, impossível, desmesurada, acompanha e liga as mudanças de ângulos, pontos de vista e escalas de planos, ora fixos ora em movimento com a maior das classes. “Azione, azione, azione”, equivalente italiano da máxima walshiana, “they’re called motion pictures, so let’s make them move”.
“Sim, nós tivemos um orçamento à volta de 1 milhão de dólares, que é realmente uma grande quantidade de dinheiro para uma produção deste tipo aqui em Itália. Fabrizio De Angelis é um produtor muito interessante. Ele percebia que cenas precisavam de muito dinheiro para a coisa toda ser mais credível e interessante. Fiquei muito surpreendido. Quando pedi mais dois ou três dias de rodagens para criar uma cena especial, não houve problema absolutamente nenhum para ele. Pedi mais carros, mais motas, mais figurantes, nenhum problema. Ele compreendeu-me como realizador e estava mesmo interessado em ter um filme com bom aspecto. É mesmo um produtor incrível, formidável. (…) Infelizmente não há mais produtores como ele no negócio de cinema italiano. A profissão ‘produtor’ está quase a desaparecer. Hoje em dia há uns magnatas estranhos da TV a juntar dinheiro para filmes. Põem 40 por cento do orçamento no seu próprio banco, mais 40 por cento nas contas dos filhos e o resto pode ser usado para o filme. É nojento.” Hoje, só talvez Paulo Branco produzisse um filme de Castellari. Tendo trabalhado este ano com Franco Nero, a coisa já esteve mais longe de ser possível. Mas, até ser possível, verdadeiros cineastas de profissão, e que aprenderam o ofício ao trabalho, como só há electricistas ou mecânicos, e porque o cinema agora é uma coisa “respeitável”, esperam, entre o silêncio e as conversas sobre os “good old days”, por “better days”. Castellari, James B. Harris, Ted Kotcheff, Sergio Sollima, Manuela Serra, para citar só alguns. Há tanto trabalho a ser feito.
E não se falou da última cena do filme, em que Fred Williamson morre à Jimmy Cagney, da cavalgada e do assalto a ferro e fogo àquele castelo em ruínas, de Vic Morrow, de Christopher Connelly, das cores do filme, dos zooms (valha-me Deus, os zooms!), da organização competentíssima entre os exteriores e os interiores (que, além de ser da ordem formal, era também um puzzle de produção), dos fumos, das fogueiras, das lixeiras, das poças e deste Bronx imaginado mas que não andará muito longe do verdadeiro. Enfim, de nada se falou, mas isto é mesmo assim.