Consulte: Palatorium do dia 9 de Fevereiro e do dia 17 de Fevereiro
Entramos no mês de Fevereiro pela mão de algumas estreias sonantes. Comecemos pelo ovni que é – não é sempre? – o filme de Apichatpong Weerasethakul, Memoria (2021), gerando paixões e rejeições viscerais comme il faut. Destacamos ainda uma certa decepção em torno do último de Guilermo del Toro, Nightmare Alley (Nightmare Alley – Beco das Almas Perdidas, 2021). E uma boa surpresa falada em português: 28½ (2020) de Adriano Mendes, jovem realizador português que entrevistámos aqui. Por fim, convidamos o leitor a (re)entrar na conversa sobre Licorice Pizza (2021), o novo filme de PTA, a partir do tête-à-tête levado a cabo pelos walshianos Ricardo Vieira Lisboa e Luís Mendonça.
Destacam-se ainda as cinco palas dadas por Ana Cabral Martins a Verdens verste menneske (A Pior Pessoa do Mundo, 2021) de Joachim Trier e as quatro dadas por Daniela Rôla ao mesmo filme – sem dúvida, um dos destaques do mês, ainda que não unânimes entre os walshianos.
Seguem-se os comprimidos de El buen patrón (O Bom Patrão, 2021), o multipremiado filme do espanhol Fernando León de Aranoa, por Daniela Rôla (que aqui dá três palas) e de The Lost Daughter (A Filha Perdida, 2021), estreia na realização da actriz Maggie Gyllenhaal, por um algo céptico Ricardo Gross (duas palas).
Acrescenta-se ainda um comprimido entusiasta de uma comédia romântica: Marry Me (Marry Me – Fica Comigo, 2022) de Kat Coiro, com Jennifer Lopez e Owen Wilson – ainda é possível encontrar uma boa comédia romântica por estes dias? Pergunta e princípio de resposta por parte de Daniela Rôla. Ricardo Vieira Lisboa debruça-se, com descrença, sobre o Don Quijote de Terry Gilliam. João Araújo visita, receoso, o novo Texas Chainsaw Massacre (2022) e debruça-se sobre o drama russo Razzhimaya kulaki (Descerrando os Punhos, 2021) de Kira Kovalenko. Ricardo Gross escreve ainda sobre os novos filmes de Asghar Farhadi e de Jane Campion (este muitíssimo badalado ultimamente, um dos favoritos nos Óscares), ambos títulos a estrear no início do próximo mês.

Bem-vindos à Básculas Blanco, empresa reputada no fabrico de balanças industriais, dirigida pelo Sr. Blanco (Javier Bardem). Toda a sua vida está nesta empresa e todos nesta empresa são, para ele, a sua família. Na verdade, trata-se de uma gestão paternalista, já que nenhuma vertente da vida dos trabalhadores da empresa e das suas famílias escapa ao seu controlo. O que o realizador Fernando León de Aranoa acaba por nos mostrar é o lado maligno dessa concepção ingénua de que uma empresa pode ser encarada e gerida como uma grande família, para a qual todos contribuem benevolamente e encimada por um bom patrão – um bom pai, se quisermos – que de todos cuida. Como se a harmonia fosse algo próprio das famílias…
Se esta “família” produz balanças, símbolo de equidade, de justeza na aplicação da lei, ela remete-nos também para outras famílias com a sua interpretação muito própria da “justiça”. The Godfather (O Padrinho, 1972) é, aliás, mencionado explicitamente pela personagem interpretada por Javier Bardem e é no filme de Francis Ford Coppola que encontramos todo o modus operandi deste patrão. Quando o trabalhador ancião o procura, pedindo a sua intervenção para ajudar o filho desencaminhado, o patrão trata. Quando o director de produção começa a apresentar problemas de produtividade, resultado das infidelidades da mulher, o patrão trata. Quando os protestos de um antigo trabalhador ameaçam o bom curso da iminente visita de uma comitiva para a atribuição de um prémio de excelência, o patrão trata, a seu modo, organizando uma operação de limpeza operática digna da chacina destinada a eliminar todos os inimigos da família Corleone.
Daniela Rôla, 9 de Fevereiro de 2022

O humorista Louis C.K. tem uma fórmula que sintetiza a primeira longa-metragem da actriz Maggie Gyllenhaal: “Boys fuck things up; Girls are fucked up. (…) Girls, like, leave scars in your psyche that you find later, like a genocide or an atrocity…” A protagonista de The Lost Daughter (A Filha Perdida, 2021) é simultaneamente agente e vítima das cicatrizes que as raparigas provocam: ela é a jovem que se perdeu para os pais, a mulher que abandonou as filhas, e a professora de Literatura Comparada que, durante umas férias nas ilhas gregas, encontra a criança que se dispersara enquanto brincava, da atenção desleixada dos adultos por ela responsáveis.
The Lost Daughter não é um filme banal, mas de certa forma banaliza o interesse suscitado pelos seus elementos, à medida que percebemos que a sua estrutura de thriller psicológico assenta num jogo que excita a curiosidade do espectador, sem alguma vez concretizar além do mais previsível. Gyllenhaal e a directora de fotografia Hélène Louvart tecem uma teia de imagens sedutoras, que dão o carácter cada vez mais acossado da protagonista (uma novamente muito boa Olivia Colman), que da suposta ameaça dos elementos exteriores passa ao que representa verdadeiramente a razão do seu desequilíbrio: um sentimento de culpa para com o fardo da maternidade, que ela ousou largar durante três anos para ir viver com outro homem.
A litania dos condicionamentos que a maternidade exerce sobre os outros desejos das mulheres, conhece aqui uma versão de prestígio, polvilhada de referências literárias e de simbolismo. O que não evita que o filme de Maggie Gyllenhaal, de início estimulante, se torne arrastado e rebarbativo. O filme de Gyllenhaal é como que um Guadagnino no feminino.
Ricardo Gross, 9 de Fevereiro de 2022

Nos tempos que correm, manter a fé na comédia romântica não é muito diferente de manter a fé no amor. E isso implica ter sempre um pouco mais de paciência, para não acabar a dizer como Kat (Jennifer Lopez), já em desespero, que o amor não passa de uma mentira. Em Marry Me (Marry Me – Fica Comigo, 2022), teremos que ter a paciência de passar por todos os endorsements da praxe e validações do politicamente correcto, para finalmente iniciarmos a tarefa de reconhecimento dos elementos típicos do género, como quem volta a casa. As referências estão lá e são facilmente reconhecíveis: a envolvência musical de Music and Lyrics (Música e Letra, 2007), a história que une a celebridade e o plebeu de Notting Hill (1999), as pequenas vinhetas à la When Harry Met Sally (Um Amor Inevitável, 1989) nos créditos finais.
Se o outsider Owen Wilson parece aqui deslocado, essa é uma cartada que resulta, porque reforça a estranheza que a entrada de Charlie no mundo de Kat deve provocar. Não inovando muito – afinal, a figura do cinderella man foi inventada em Platinum Blonde (Loira Platinada, 1931), de Frank Capra – Marry Me consegue oferecer algo que faça justificar a sua existência, questionando as escolhas que desenham os caminhos tortuosos para a felicidade. O seu grande mérito reside em desconsiderar o mundo da fama e da celebridade e aproximar as suas personagens em problemas menores e comuns – parar, desligar a rotina, rearranjar o tempo, olhar à volta com outros olhos. E, no fundo, tudo se reconduz a um desejo simples e complicado, o desejo de ser amado – por um companheiro, pelo público, pelos pares.
Daniela Rôla, 17 de Fevereiro de 2022

Nos primeiros minutos do filme, depois do cartão de abertura onde se lê “após 25 anos fazendo e desfazendo…” e de uma sequência de abertura em que se revela o dispositivo do filme-dentro-do-filme, The Man Who Killed Don Quixote (O Homem Que Matou Don Quixote, 2018) apresenta-se como uma sucessão de meta-referências ao próprio projeto continuamente adiado, onde o protagonista é simultaneamente personagem do livro de Cervantes e realizador do filme que o adapta. O personagem-realizador, interpretado por Adam Driver, atravessa um arco narrativo que o leva de Sancho a Quixote, isto é, de burgesso desconfiado a génio aluado. É uma assumida ferramenta de auto-mitificação de Terry Gilliam, onde o cineasta-dentro-do-filme é atormentado pelo peso do seu espírito visionário e pelo seu amor à aventura e às suas personagens (um pouco como acontece naqueles programas de entrevistas a celebridades, em que se interroga o convidado sobre “o seu maior defeito” e a resposta versa sempre sobre uma falha que é afinal edificante). Gilliam é entrevistador e entrevistado, e seu o filme tem momentos de contorcionista autofelação. Além das pretensões mitológicas, The Man Who Killed Don Quixote sofre daquilo que molesta todo o cinema de Terry Gilliam: uma falta de economia que converte os seus filmes numa série mais ou menos morosa de sequências mais ou menos ousadas, sem qualquer densidade dramática e pejada de buracos narrativos solucionados por sucessivos e cada vez mais toscos deus ex machinas.
Ricardo Vieira Lisboa, 20 de fevereiro de 2022

Este é um filme que decorre sobre a influência de um contexto e um acontecimento que não é mencionado, mas que paira de forma inelutável sobre toda a história, um evento traumático que não deixa cair o passado no esquecimento, como uma ferida aberta. Esta é também a história de uma família disfuncional, de um pai conservador, protector e violento, de um irmão que regressa temporariamente à casa que abandonou, e principalmente de Ada, a filha e irmã que procura uma qualquer liberdade alternativa à sua realidade. Estamos na Ossétia do Norte, uma república russa do Norte do Cáucaso, que faz fronteira a leste com a República da Chechénia, e a memória do evento que influência a acção é o massacre de Beslan, atentado terrorista numa escola que deixou centenas de mortos e feridos. Ada carrega no corpo as cicatrizes desse evento, mas o seu impacto é maior do que isso: Kira Kovalenko filma este sítio como se algo estivesse permanentemente off, em dessincronia com o mundo à sua volta, ou como se este mundo estive em dessincronia com o exterior, inacessível, distante. Ada é uma personagem tragicamente triste, que procura sair de casa e do domínio do seu pai, e escapar de uma cidade que a enclausura no seu passado, mas numa sociedade retraída é uma sobrevivente a quem não é permitido viver. Mais do que um realismo mágico, Kovalenko procura um realismo etéreo, e o resultado é um filme sensorial (muito por causa das diversas sequências de câmara à mão que seguem Ada), que brilha a espaços e consegue alguns momentos poéticos (como uma cena numa piscina), mas que nos deixa de fora durante a maior parte do tempo.
João Araújo, 28 de Fevereiro de 2022

Confesso que, sendo um admirador do original de Tobe Hooper de 1974, sem dúvida uma das obras maiores do cinema de terror do século passado, nunca acompanhei de forma muito séria as diversas sequelas e versões que surgiram depois, nem sequer as dos últimos anos, desde Texas Chainsaw 3D (Texas Chainsaw: O Massacre, 2013) a Leatherface (Leatherface: A Origem do Mal, 2017), conseguindo talvez dessa forma manter de forma algo intacta a memória assombrosa do original. A excepção terá sido a versão de 2003, do quase-anónimo Marcus Nispel, co-produzido por Michael Bay e Tobe Hooper, que contava no elenco com algumas figuras relativamente conhecidas de papéis secundários (Jessica Biel, Eric Balfour, R. Lee Ermey), e que sendo apenas um remake, não acrescentava nada ao original mas também não era nenhuma heresia, conseguindo a espaços explorar o sentimento de temor inescapável do filme de 1974, ou seja, respeitando de alguma forma o material original.
Se o início desta nova versão até parece promissor pela forma como explora o imaginário – criado por tantos outros filmes parecidos – da possibilidade de perigo contido nos caminhos do interior abandonado de uma América profunda esquecida, a partir do momento em que voltamos a ouvir a motosserra e esse perigo se manifesta, essa promessa inicial dissipa-se rapidamente e de forma estrondosa, revelando um filme completamente desnecessário. A acção decorre muitos anos depois dos eventos da história original, e depois de uma referência à única vítima que sobreviveu a esse ataque, acompanhamos um grupo de amigos que decidiu revitalizar Harlow, pequena cidade cujo maior legado é mesmo a recordação desse massacre (que serve até para vender memorabilia). O grupo de visitantes tem na agenda uma espécie de gentrificação acelerada, numa crítica social oca que parece ter sido pensada a partir de uma salada de palavras (como telemóveis, influencers e ecologia), mas o que é realmente incrível é como é que 48 anos depois do original é possível fazer um filme em que todas as personagens parecem um cartoon ou uma paródia de um comportamento normal, que parecem estar presas numa casa de horrores sem vontade própria, condenadas a repetir erros e acções de filmes anteriores. O filme joga ainda uma última cartada, na continuação do que tem sido feito por várias legacy sequels, com o aparecimento de Sally, a única sobrevivente do ataque de 1974, que é agora uma Texas Ranger, e se artifício dessa “ressurreição” até era usado de forma interessante no primeiro Halloween (2018) de David Gordon Green (e muito menos na desastrosa sequela), aqui sim, pelo tratamento dado a essa personagem original, aproxima-se da heresia.
João Araújo, 28 de Fevereiro de 2022

O novo filme de Farhadi tece uma crítica à sociedade iraniana, em particular às suas instituições, demasiado preocupadas com a gestão das aparências e muito vulneráveis às opiniões veiculadas pelas redes sociais. Confesso a minha dúvida quando olho para Ghahreman (Um Herói, 2021). Até que ponto este retrato familiar e social pretende partilhar com o espectador um olhar realista sobre o Irão contemporâneo, ou se Farhadi está mais interessado em fazer uma sátira. Para estarmos mais seguros do tom do filme, seria necessário ultrapassar o obstáculo da tradução (e eventualmente a clivagem cultural também), que por muito fiel que pretenda ser, deixa a ideia de falhar alguns matizes decisivos a uma maior compreensão de tudo o que vemos.
Usando do habitual labor exaustivo de Asghar Farhadi em torno dos diferentes graus de verdade e mentira, Ghahreman encaminha-se para uma crónica do absurdo e da incapacidade do indivíduo perante a escalada de interpretações e consequências de uma mentira que assume proporções que escapam ao seu controlo. Rahim Soltani é o anti-herói desta rocambolesca aventura, um homem cuja aparência vai adquirindo sucessivos contornos que acrescentam à personagem as qualidades da vítima e do aldrabão. A questão da honra de Soltani (e toda a gente apela à importância da sua honra, quer sejam entidades individuais ou colectivas) é triturada ao longo do filme, até ao desespero final, que o faz optar pelo recuo e o apagamento da sua identidade. Depois da experiência espanhola algo indistinta [Todos lo saben (Todos Sabem, 2018)], trata-se aqui de um Farhadi formalmente ocidentalizado e de processos narrativos requentados.
Ricardo Gross, 28 de Fevereiro de 2022

Das produções cinematográficas Netflix, conheço apenas os títulos que tive oportunidade de ver numa sala de cinema. E que filmes são! Roma (2018) de Alfonso Cuáron; The Irishman (2019) de Martin Scorsese; The Disciple (2020) de Chaitanya Tamhane; e agora The Power of the Dog (O Poder do Cão). Parece-me que nos casos em apreço o que está em causa é o poder do cinema, no que não deixa de ser paradoxal quando os filmes seguiram em alguns países a via exclusiva do streaming, sem poderem ver as suas qualidades artísticas ser apreciadas em pleno.
O filme de Campion é um exercício claustrofóbico de ressonâncias mitológicas sobre aquilo que de forma simplista passou a ser designado por “masculinidade tóxica”. A figura mais importante em The Power of the Dog é alguém que só se manifesta através das alusões feitas pela personagem de Benedict Cumberbatch (magnífico no sombrio e ameaçador Phil Burbank). O tal cobói mitológico chama-se então Bronco Henry e foi ficcionado pelo escritor Thomas Savage (autor do livro adaptado por Jane Campion), com base num homem que trabalhara no rancho dos avós de Savage. Phil que, viremos a saber, fora iniciado por ele é mais de um sentido, é o portador deste legado viril, telúrico e territorial.
Campion constrói um exercício predominantemente em interiores sobre duas figuras opressivas. Uma oprime pela ausência e a outra através da sua presença, que visa expulsar os elementos que ameaçam essa ordem primordial de onde só os homens fazem parte e que se manifesta através de uma masculinidade partilhada entre fortes. É um mundo que Jane Campion compreende há muito tempo, pelo menos desde The Piano (O Piano, 1993), e em The Power of the Dog existe mesmo um piano que é transportado pela planície do Montana, como o outro que víramos ser descarregado numa praia de Nova Zelândia. Em ambos os filmes, o confronto entre os mundos selvagem e civilizado, e uma cuidadíssima atmosfera gótica realista de onde emerge a tensão erótica que convoca desejo e castração, e até a morte.
Ricardo Gross, 28 de Fevereiro de 2022