No universo do cinema directo, se os filmes do americano Frederick Wiseman são fontes de conforto, de tão apaziguadores tanto para o corpo que os recebe como para o espírito que os interioriza, o trabalho do francês Nicolas Philibert retém o corpo dos olhares eloquentes, da tradução das coisas escondidas em lugares desconhecidos, da lucidez presente nas faces, gestos e palavras comuns. E embora ambos trabalhem as cerimónias e rituais das instituições com a modéstia daquele que vê e ouve e encontra para ver e ouvir e encontrar e não para nos mostrar que o fez, o primeiro aproxima-nos mais da imersão cinemática e da ficção do documentário. Philibert está sempre mais próximo das pessoas. Em conjunto, habitam o espaço feliz do cinema observacional que se desenrola sem narrativa ou narração, e que não faz quaisquer juízos de valor ao longo da acumulação das suas sequências. Se existe uma intenção, é a de tornar o invisível visível. Mas até esse ser descoberto, resta-nos a viagem.

E eis a mais recente viagem de Philibert, Sur L’Adamant (Sobre L’Adamant, 2023) agora nos cinemas portugueses, quase um ano depois de o filme ter arrecadado o Urso de Ouro no Festival de Berlim, surpresa de que poucos estavam à espera (não é só no tom e estrutura do seu trabalho que o documentarista veterano é discreto). O filme começa no Sena em Paris. Com o título a conduzir a um estreitamento (um a respeito de algo), um olhar que se abre à especificidade de um lugar, os primeiros momentos do filme são rápidos a indicar que o oposto será verdade. Há um descobrir físico, poroso e teatral, das portadas de madeira do edifício/ninho-centro de dia que se deixa encher pela luz da manhã enquanto flutua sob o Sena, e uma sequência onde a faixa musical de Téléphone, “La Bombe Humaine” é interpretada. Je veux vous parler/de moi, de vous (Venho-vos falar de mim/de vocês), anuncia-nos a letra da música. E…zarpamos.
Por cima da ternura e respeito de uma câmara inconspícua mas atenta, vamos então do individual para o colectivo, até ouvirmos o trautear da loucura que pertence à humanidade, essa explosão que nos interliga.
A bordo do L’Adamant e durante as restantes quase duas horas, testemunharemos as rotinas de um centro de dia que acolhe aqueles que sofrem de perturbações do foro mental, pensaremos na loucura na sociedade, temática que Philibert já tinha explorado antes [La Moindre des Choses (O Mínimo das Coisas, 1996)], e em tudo aquilo que diz respeito às dimensões interiores e exteriores de um sentido de comunidade qualquer. Mas ao contrário do que acontece com a mais recente das travessias de Wiseman, Menus Plaisirs – Les Troisgros (2023), por exemplo, na qual rapidamente nos vemos enodados na redução e caramelização de uma substância líquida na cozinha de um restaurante francês, o barco flutuante ancorado é estrutura estabilizadora que só é reconhecida pelo que é por aqueles que por ela passam ou a ela voltam. Para todos os outros, é nada mais do um barco no rio onde os processos, que ocorrem dentro dele e dentro de cada pessoa que o frequenta, não se materializam fisicamente
Os dias correm e a arte, a música, a dança e o cinema são refúgios canalizadores de uma ideia de vida. Mas a feitura do seu sucesso padece de falta de receita ou metodologia que possa ser registada, até porque se depura ao longo do tempo. E a única forma que a câmara tem de comunicar essa passagem é em registar determinados momentos do status quo do centro, que se vão repetindo, e entrelaçá-los com pequenas conversas pedidas pelo realizador. Por cima da ternura e respeito de uma câmara inconspícua mas atenta, vamos então do individual para o colectivo, até ouvirmos o trautear da loucura que pertence à humanidade, essa explosão que nos interliga.

A partir daí, aguardamos que o filme atinja a revelação que nos é anunciada logo de início, e que se recolha. Mas o que fica no corpo do espectador de Sur L’Adamant, sobretudo numa segunda leitura, é a de um filme cujo calor se foca só e apenas na claridade que aquelas pessoas evocam em nós. O mesmo olhar (re)conhecedor e penetrante de Nénette, estampado na capa do jornal da Cinemateca Portuguesa neste mês de Novembro, seja lá em que posição nos encontraremos em relação a ele. É a psicanálise do olhar do animal sobre o qual John Berger escreveu no ensaio Why Look at Animals (1980), o olhar e ser visto que nos refaz: “O Homem torna-se consciente de si mesmo ao devolver o olhar.”
(…) é foco de resistência na forma como sussurra, na forma como diz que somos capazes de sobreviver a tudo, até e especialmente a nós mesmos.
Dito isto, nos meandros do que podemos ou não comunicar e daquilo que foge ou não do nosso controlo, ressalta uma suave poesia – faz lembrar gotas de perfume que perduram pelas ruas -, em parte pertencente às pessoas que ocupam o ecrã, que tanto ilumina como indica quão rarefeito o filme acaba por ser. Mais poderia existir no seio da luta e energia dos que não desistem. Um desejo cresce no espectador de conhecer aquelas pessoas, realmente conhecê-las, o que condena o filme à frustração do documentário que se apresenta ainda cru. Fiquei inclusive à espera de que talvez Philibert viesse a expandir a forma como as crises do foro mental estão relacionadas com percepções sociológicas sobre alteridade que precisam e urgem ser investigadas. Seja como for, não há como negar quão mais vasto o mundo se parece depois de passarmos por Sur L’Adamant. Assente no silêncio afável que o cobre, é foco de resistência na forma como sussurra, na forma como diz que somos capazes de sobreviver a tudo, até e especialmente a nós mesmos.
★★★☆☆