O Cineclube de Braga, Lucky Star começou em Janeiro de 2016 e desde aí tem convocado – com a sua programação centrada na progressão histórica do cinema americano – autores, cinéfilos, críticos, filmes, e, sobretudo, espectadores, para ver, discutir e pensar o cinema. Numa das suas sessões de Março fui ao norte ter com os seus dois fundadores – o programador, crítico e ex-colaborador do À pala de Walsh, João Palhares, e o realizador, programador, cinéfilo, José Oliveira – e daí resultou esta conversa sobre crítica de cinema, cinefilia e programação com gremlins, cerveja e um pratinho de feijoada minhota pelo meio.
Como surgiu esta ideia de criar o cineclube “Lucky Star”?
João Palhares (JP) – Começámos por tentar convencer um pessoal que tem uma associação no Braga Shopping a fazer um workshop sobre o John Carpenter. A ideia era apresentar uns filmes e com o mesmo esquema que é agora o “Lucky Star”. E foi daí que depois nasceu a ideia do cineclube propriamente dito, com a apresentação das sessões e só depois pensámos na hipótese das apresentações em vídeo.
José Oliveira (JO) – Foi isso. Queríamos fazer coisas sobre cinema em Braga. Tentámos um workshop, escolhemos um realizador que os dois gostássemos, a ideia era ver que pessoas existiriam aqui na zona interessadas em cinema. Tivemos pouquíssimas inscrições mas queríamos fazer lá alguma coisa pois a sala do Braga Shopping foi muito importante para nós. Vimos lá muitos filmes. Era a única sala que estava acessível para nós na altura porque entretanto a sala do Theatro Circo fechou… Ali nos anos 90 ficámos apenas com o Braga Shopping.
E passava todo o tipo de cinema?
JO – Sim, tudo. Tarantino, Almodóvar, Gus Van Sant, Paul Thomas Anderson, Michael Mann… Um bocado como um pequeno cineclube. E essa sala era importante porque nós vimos lá os filmes que nos marcaram.
JP – Tinha também uma coisa semanal que era os filmes de culto e passava o Chaplin e o Murnau.
JO – Mas, como dizia, não conseguimos avançar com isso do workshop. Contudo, daí partiu a ideia de lançar o cineclube, à experiência, para ver como corria.
E decidiram centrar-se no cinema americano.
JO – Sim, por várias razões. Primeiro porque é o que conhecemos melhor. Depois porque é o que gostamos mais, para mim um cinema muito ligado à minha infância. E foi daí que partiu: criar uma coisa de raiz em Braga, passar bons filmes, falar de uma coisa que conhecíamos.
JP– E já na altura queríamos que fosse uma viagem cronológica, do início até à modernidade.
JO – Depois foi tudo, pelo menos para mim, um bocado baseado no modelo da Cinemateca. Foi aí que aprendemos: um filme, uma folha de sala… E convidar pessoas a apresentar filmes. Por exemplo, na primeira sessão teve cá o Pedro Costa. Ainda pensámos em usar o Skype mas tínhamos medo que a coisa não resultasse e assim pensámos que o melhor era pedir às pessoas para gravar vídeos. Até porque sem financiamento não podemos pagar aos convidados para virem até cá. O importante é que na apresentação dos filmes houvesse um trabalho de contextualização até porque Braga não é uma cidade com uma grande história de cinefilia. Por isso queríamos começar mesmo de raiz, como se, entre aspas, “inventássemos” uma Cinemateca.
E neste momento este vosso projecto já existe há mais de um ano.
JO – Sim, começou em Janeiro de 2016, primeira sessão foi dia 5. Teve um tempo nessa sala do Braga Shopping, através de uma associação chamada Toca. Depois tivemos alguns problemas com eles e parámos um mês e meio. Logo de seguida tivemos uma proposta de uma associação chamada Velha-a-Branca, através do Luís Tarroso que é uma pessoa muito dinâmica aqui na cidade de Braga. Deve ter visto o nosso projecto na internet, suponho, e convidou-nos para programar numa pequena sala, com apenas 35/30 lugares nessa associação. Uma coisa íntima, familiar e nós achámos que mais valia continuar do que parar simplesmente.
E nesse trajecto que descreveram têm sentido uma evolução na resposta do público? Isto porque num projecto há sempre um período de afirmação do conceito, de fidelização do público.
JP- Sim, temos uns regulares e depois gente que vem nova e vai ficando…
JO- A primeira sessão na Toca, talvez por ser uma coisa nova, por ter o Pedro Costa, por ter saído no jornal, estava cheia. E depois a segunda foi uma queda abissal, mesmo para desanimar.
JP- E depois há sessões que surpreendem… sala cheia e não sabemos bem porquê. Uma dessas sessões foi a do Scarecrow (O Espantalho, 1973) de Jerry Schatzberg. Inacreditável, ainda hoje não sei como foi possível…
JO – É surpreendente mas tem a ver com a própria dinâmica da cidade de Braga. Tem outro tipo de eventos e as pessoas preferem fazer outras coisas. Mas às vezes pensamos “grande filme, vai ser uma grande sessão” e depois tem duas, três pessoas. E, como disse o João, às vezes é o oposto… Mas o que é engraçado é que há pessoas que vão a todas as sessões, ou quase. E isso para nós era importante, criar uma dinâmica, conhecer pessoas que gostassem de cinema. E sendo uma cidade universitária, uma das mais jovens do país, às vezes sente-se isso nas sessões, público muito jovem.
Como é o ritual que criaram aqui no cineclube? Falo nisso pois os processos de mediação com os filmes às vezes são mais importantes do que os próprios filmes…
JP – Por vezes conversamos no fim, mas é raro. Quando o fazemos é porque temos um convidado presencial. Aconteceu por exemplo quando convidámos o Luís Miguel Oliveira e o Adolfo Luxúria Canibal que vieram apresentar o The Last Waltz (A Última Valsa, 1978) de Martin Scorsese. Foi uma bela conversa.
E está disponível para as pessoas verem.
JO – Sim, está. Sabes, é muito diferente fazer coisas em Lisboa, uma cidade com uma cinefilia histórica, ou em Braga. As pessoas lá estão habituadas a receberem convidados internacionais, a terem acesso a formas de contextualização dos filmes. Aqui não me lembro de isso existir. Essa coisa dos filmes de culto de que falaste João, no Braga Shopping, por vezes tinha umas folhas, não tinha?
JP – Sim, havia um programa. Mas não tinha convidados.
JO – Aqui, muitas vezes, as pessoas entram e nem sabem que existe uma folha de sala. E ficam surpreendidas e quando vêem o vídeo também é uma surpresa. A ideia foi inventar uma coisa que fizesse com que as pessoas tenham mais vontade de ver filmes aqui em Braga.
E das estratégias que usam – o texto, o vídeo, os convidados – o que é que acham que tem mais impacto?
JP- Acho que é o próprio filme. Eu creio que aqui, em Lisboa ou em França, o mais importante é o filme.
Digo isto, porque o filme pode ser muito bom mas se não existir uma porta de entrada, uma contextualização, uma comparação, o interesse do público pode vir a não ser suficientemente despertado…
JP- Sim, nesses casos o vídeo, a folha, ajudam, com certeza.
JO- Sim, a ideia é ajudar. Como aconteceu comigo, aliás. Alguns destes filmes, há anos, quando os vi, sem as folhas, por exemplo, do João Bénard da Costa, podia começar a pensar que eram coboiadas ou filmes sem interesse… Estes materiais existem para que o filme possa ficar um bocadinho na cabeça das pessoas. Tentamos ser o menos dispersos possível, e tentar suscitar interesse sobre o contexto que rodeia os filmes, tecer ligações, não só com os filmes que passámos mas com outros também, para que as pessoas possam ir atrás do resto. Nesses textos importa a perspectiva histórica, a nossa opinião, sobretudo que tudo isto faça sentido para uma cidade como Braga.
O que é que acham desta ideia do declínio da crítica de cinema e sua substituição pelos gestos de programação ou curadoria?
JP – O Bénard da Costa quando escrevia para o Independente recebia cartas dos leitores que lhe pediam para escrever sobre determinado filme. Isso hoje é impossível. Hoje passa um filme do Joe Dante [Gremlins 2] e ele fala um bocadinho desse declínio. No seu site Trailers From Hell ele tenta estimular as pessoas contra a dispersão, para não se perderem num mar de nomes e se agarrarem a nomes importantes.
JO – Para mim o que tentamos fazer é a coisa mais clássica do mundo. Mostrar um filme, ter um texto para ajudar as pessoas e um vídeo para ter outro ponto de vista que não o nosso. Não pensamos muito nessa possibilidade de falência da crítica…
Sim, eu pensei nisto porque cada vez mais gestos de programação como o vosso têm este potencial crítico ao qual as pessoas se agarram como se fossem escritas e reescritas da história do cinema.
Uma coisa interessante que gostava que falássemos é esta dinâmica entre uma geografia precisa – Braga – e a geografia sem fronteira do digital. Os vídeos que vocês encomendam acabam por funcionar como pistas de programação globais, uma vez que os filmes estão disponíveis na internet e qualquer pessoa pode ver os vossos vídeos e ler os textos. Pensaram neste dinâmica?
JO – Bom, não começámos com essa intenção. Por exemplo, o primeiro vídeo que pedimos foi ao Sérgio Alpendre, sobre o Cleopatra (Cleópatra, 1934) de Cecil B. DeMille. E pedimos-lhe porque sabíamos que ele gostava do filme e admiramo-lo como crítico. E achámos piada esta ideia de ter um crítico brasileiro em Braga a falar sobre um filme que programámos. Mas depois sim, fomos tomando consciência do potencial dos vídeos, quase como de arquivo e de ter estes testemunhos de pessoas que eu ou o João admiramos. Por vezes, lembramo-nos que alguém escreveu há vinte anos uma coisa que ninguém leu. Ou qualquer outra coisa, por mais pequena que seja. E isso pode ser motivo para ir buscar um texto ou pedir um vídeo. Por exemplo, um dos vídeos é do Matheus Kerniski tudo porque o João encontrou uma vez na internet uma linha escrita por ele que dizia que o Harry & Son (O Confronto, 1984) de Paul Newman era como uma música do Bruce Springsteen. E essa acabou por ser a razão para lhe encomendar o vídeo. Outro exemplo, o Carlão dos “Da Weasel” foi porque me lembrava que numa letra ele dizia “como num filme do Spike Lee”. E acabou a apresentar o Do the Right Thing (1989).
Era aí que eu queria chegar. Porque a acessibilidade dos filmes é hoje diferente, a mediação ou programação tem hoje este potencial expansivo, de ser concebido para um espaço físico e se poder alargar ao espaço digital e a outros públicos virtuais. E sobretudo, de se poder replicar, uma proposta de programação como um todo, através dos vídeos e dos textos, no outro lado do mundo.
JP – Eu confesso que só recentemente percebi que, por exemplo, ver uma comédia numa sala, com gente à volta, é completamente diferente do que ver num portátil.
JO – Há uma energia própria que se transmite.
JP – O riso contagia-se. É uma coisa incrível.
JO- Penso que isso tem algo daquilo que se fala dos primórdios do cinema, aquelas grandes salas, as experiências religiosas. Hoje é uma coisa mais solitária. Só ainda sobre o que dizias: nós temos o feedback de um espectador que já nos disse que não pode vir às sessões mas que tem acompanhado a nossa programação em casa. Saca os filmes e depois usa os nossos textos e vídeos.
JP- Eu acho mesmo que os nossos espectadores muitas vezes vão aos nossos filmes mais para estar com pessoas do que propriamente para aprender sobre cinema. O que eu compreendo perfeitamente.
JO- Como te disse, em Braga nunca houve esta tradição de cineclubes, cinematecas e creio que as pessoas acham interessante entrar nesse mundo de cinefilia.
Engraçado ver que a interacção com o público, numa sala cheia, tanto pode adicionar como subtrair à nossa experiência de ver um filme. O vosso público reage como? Quer mais receber informação ou dar a sua opinião?
JP- No caso da sessão de A Última Valsa começaram por ouvir e depois queriam dar as suas impressões.
JO- Foi uma experiência excelente. O Adolfo Luxúria Canibal é uma pessoa com um peso muito grande aqui em Braga e foi uma coisa profunda, ele a falar do Bob Dylan. Foi especial. Ele disse que só tinha visto o filme há 30 anos e que se lembrava ainda de tudo. E depois o Luís, que é crítico de cinema mas também tem uma relação forte com a música, juntou muitas ideias. Mas dessa vez houve muita participação, pode ver-se no vídeo.
Já falámos sobre o facto de quererem programar cinema americano, com uma linha cronológica, mas em concreto como escolheram os filmes?
JO- Foi tudo dividido.
JP- Dizíamos: anos 30, escolhe dois eu escolho dois. E avançámos assim. E depois a coisa mecanizou-se, agora já nem temos que falar muito.
E quem escolhe o filme é que escreve?
JO – Normalmente sim. Mas pode haver excepções. Se damos uma carta branca, por exemplo, aí não escolhemos o filme, mas um de nós terá de escrever para a sessão.
E vocês diriam que, além da cronologia e da nacionalidade dos filmes, há mais coisas que unem todo este conjunto de filmes que têm programado?
JO- É difícil de dizer. É uma programação bastante ecléctica, há obras-primas consensuais mas depois, sei lá, há westerns do Budd Boetticher, filmes negros do Siodmak…
JP- Policiais do John Flynn…
JO- E depois há, pelo menos da minha parte, a vontade de recuperar certas obras, de dizer “este gajo é muito bom e toda a gente devia conhecer”. Filmes que ninguém liga e tentar mostrar que são grandes obras e explicar porque…
JP- Sim, tentar mostrar coisas diferentes.
Ainda não apanharam ninguém contra os filmes que escolhem?
JO- Já, já. É normal, dizer que é uma coboiada, ou assim.
JP – Mas depois vão às sessões todas.
JO – Sim, dizem que o filme não tem interesse, mas depois vêm à próxima sessão. O que é engraçado, por mim quase que valia a pena fazer o ciclo só por causa disso.
JP- O choque que os filmes provocam é interessante.
Mesmo dentro desta proposta do cinema americano, estão a pensar avançar para filmes mais recentes ou não?
JP- Para já estamos a pensar parar nos anos 2000. Mas não é por acharmos que não se tenha feito nada de bom para lá disso, é simplesmente porque esses estão mais acessíveis.
JO- Acho que há muitas obras-primas do cinema americano nesses anos: podia-se fazer dois ou três meses de ciclo só com esses filmes. Mas como os filmes passaram aqui há pouco tempo, não me parece que faça muito sentido. Por exemplo, o Million Dolar Baby (Sonhos Vencidos, 2004), vi-o 3 vezes no Braga Shopping. Achamos mais proveitoso fazermos ao contrário e ir para o cinema mudo. Estamos a pensar um mês de programação e passar o que nos faltou, sei lá, o Griffith, o Borzage, o Buster Keaton.
JP- E vão ficar a faltar muitos…
JO- Sim, depois isto é quase um problema de consciência. E se ia ser um ciclo de cinema americano completo tinha de ter o cinema mudo, obviamente.
Recentemente tivemos também a inauguração aqui perto, em Famalicão, de um projecto semelhante, o “Close Up”. Fala-se agora, finalmente, da possibilidade de concretização de uma Cinemateca no Porto. Vocês vêem a ressurreição destes projectos de cineclubes, de encontrar estratégias locais para dar a ver e pensar o cinema, como algo que tem uma certa continuidade?
JP- Penso que depende muito das pessoas que têm poder. Por exemplo, não sei se, existindo uma Cinemateca em Braga, ela não encheria. Não vejo é muito interesse político nestes projectos.
JO- É um bocado exótico, o cinema continua a ser uma coisa muito exótica. Nós vemos isso, sempre que tentamos apoios em Braga, somos sempre recebidos como aqueles gajos um bocado malucos. No nosso caso é uma coisa muito amadora, feito com boa vontade mas sem apoios. Sou eu e o João que fazemos tudo. Por vezes temos a ajuda de alguns restaurantes, hotéis, para receber os convidados mas pouco mais… É difícil obter apoios mais substanciais, mas na minha opinião é porque simplesmente não há tradição para estas coisas.
João, há pouco falaste dessa coisa de as pessoas irem às vossas sessões para poderes estar com pessoas. É irónico que tendo sido o cinema “a arte popular”, estes encontros tenham hoje uma dimensão quase clandestina. É importante também para vocês esta necessidade de estar com pessoas, de encontrar gente que partilhe dos mesmos gostos?
JP- Sim, é preciso sair de casa e promover estes encontros. Mas é impossível pensar em recriar as experiências sociais que tinham lugar, aqui ou nos Estados Unidos, no auge do cinema clássico.
JO- Penso que isso tem a ver com as próprias características da sala de cinema. Por exemplo, há uma espectadora que vai a quase todas as sessões, a Alexandra, que me disse que já tinha visto este ou aquele filme mas que vem ao cineclube para o poder ver projectado. É importante. Ver o The Man From Laramie (O Homem Que Veio de Longe, 1955) do Anthony Mann em cinemascope, com as cores do cinema clássico. Muita gente ainda pensa na importância da projecção, das dimensões e do formato em que vê o filme.
JP- No The Deer Hunter (O Caçador, 1978) a maior parte das pessoas foi à sessão para rever o filme. Um filme de 3 horas.
JO- Apesar da acessibilidade dos filmes todos é importante tentar vê-los nas melhores condições possíveis. As nossas não são mas tentamos…
Falámos da dimensão, da questão social, e há outra coisa que eventualmente animará as pessoas a vir (ainda) ao cinema: a questão da distracção e das interrupções que fazemos em casa ao ver um filme.
JP- Nós quando passa as três horas de projecção costumamos perguntar às pessoas se querem fazer uma pausa, mas algumas não querem.
JO- Isso que dizes é importante. As pessoas trabalham, têm filhos, não conseguem muitas vezes manter essa continuidade em casa…
JP- Isso acontece-nos a nós. Por vezes, quando vejo um filme em casa páro, recomeço…
JO- Eu às vezes vou ao cinema simplesmente porque sei que vou ver o filme tranquilamente, sem distracções.
Falemos de programação: como é que definem uma boa programação de cinema, por relação a uma má? Mesmo enquanto espectadores.
JP- O Langlois tem uma frase incrível sobre isso. Qualquer coisa como, não me lembro ipsis verbis, “como crítico de cinema não dispenso o espírito crítico, mas como programador sim.” O que quer dizer que passava tudo, que é preciso também ver o que é mau.
Isso é interessante. E vocês partilham dessa ideia de que é preciso dar a ver os maus filmes em contexto, para dotar o espectador de ferramentas, para que consiga separar o trigo do joio?
JP- [Risos] Nós não o temos feito, mas sim.
JO- Teoricamente, acho que sim. É evidente que é preciso ver o mau para perceber o bom. E depois, aliás, há filmes maus que têm lá coisas fabulosas dentro, uma cena, uma pormenor. Mas no nosso caso, não passou aqui no Cineclube até agora nenhum filme de que não gostasse. Mas acho que deve ser sempre pessoal, tudo o que derivar de pressões de distribuidores, outras distorções, isso já não… já vicia a programação.
JP- E nisto voltamos à questão de ter em conta que há filmes mais acessíveis do que outros e isso deve ser tido em conta quando programas.
JO- Aqui em Braga há o Braga Parque, o Orient Cineplace, há o Theatro Circo que tem uma sala magnífica mas só passam os filmes do Paulo Branco. Nesse caso, às vezes há filmes magníficos, embora não haja propriamente uma ideia de programação. Preferia que fosse a visão pessoal de um programador, mesmo que passassem filmes que não gostasse…
Mesmo nos festivais há um lado institucional que fazem com que parte dos filmes alimentem essa relação ou com outros festivais, ou distribuidoras. Normalmente, são exercícios de programação que também contemplam estes critérios. E como todos os critérios, eles são susceptíveis de serem discutidos. Não acho isso estranho, é até desejável que existam diferentes formas de programar.
JO- Uma boa programação, para mim, é uma coisa que seja fiel.
JP- Passar um mau filme porque se acha que vai ter muito público, em meu entender, é uma má programação.
Para terminar esta parte dedicada ao Lucky Star, qual é a sessão que até agora vocês consideram mais marcante no vosso projecto?
JP- A primeira foi importante, deu gozo, muito stress também.
JO- Sim, a primeira foi importante. Pelo facto do Pedro Costa ter vindo aqui a Braga. Ele teve uma hora a falar com o público e no final houve pessoas que foram falar com ele, que o conheciam, que admiravam os filmes dele.
JP- Deram-lhe prendas…
JO- Sim, isso das prendas é curioso, é uma coisa que dificilmente se deve passar em Lisboa. “Tá aqui um CD de uma banda de Braga que tens de ouvir.” [Risos] E depois a sessão do The Last Waltz também foi muito marcante.
JP- A do Red River (O Rio Vermelho, 1948) também, com a presença do Carlos Melo Ferreira. Quando se consegue ter convidados presenciais é sempre melhor.
Gostava agora de abordar um pouco outros temas mais ligados à questão dos formatos, à cinefilia e à crítica de cinema. Para começar, como é que se integram neste novo panorama de cinefilia digital, da acessibilidade quase total dos filmes, do fim da película, dos filmes no quarto, das partilhas, da pirataria, das comunidades digitais que falam à distância?
JP- São os tempos em que vivemos, temos de nos esforçar por integrar. Os estudos dizem que a película tem mais resolução que o digital e por isso o ideal é sempre vê-los nesse formato. Mas o importante é ver os filmes. Ainda hoje ela resolve coisas práticas. O James Gray foi filmar para a Amazónia e se levasse equipamento digital, por causa das condições climatéricas de humidade, aquilo não funcionava. Assim a película resolveu-lhe o problema.
JO- Sobre o problema de acessibilidade, ele sempre nos inquietou. Mesmo os textos mais clássicos da cinefilia dizem isso. Por exemplo, na Cinemateca do Langlois em que se viam filmes japoneses dobrados em finlandês. Na altura era ver o filme, perceber muito pouco mas ver na mesma. Houve grandes textos que saíram assim, por exemplo, um Ozu dobrado numa língua qualquer. Poder ver hoje filmes que não se conseguiam ver antes é muito proveitoso. Em relação a isso não sou nada saudosista.
E como é em relação às comunidades digitais que se estabelecem hoje que unem pessoas de todas as partes do mundo por via da cinefilia?
JP- Isso vem dos blogues, nós somos dessa geração.
JO- Sim, foi através dos blogues e das redes digitais que eu conheci a maior parte das pessoas que foram e são importantes para mim na área da cinefilia e da crítica. Foi uma revolução essa altura. Eu sou do tempo dos videoclubes, de gravar filmes de um vídeo para o outro. No início dos anos 2000 houve aquela febre dos blogues que entretanto esmoreceu e deu lugar a esta espécie de não lugar chamado Facebook. Aí as coisas desaparecem… nunca mais encontras um texto quando ele sai do teu feed.
A escrita sobre cinema também sofreu uma mutação desde os textos dos jornais e das revista, aos blogues, e depois ao “micro criticism” com os “aforismos” imediatos dos tweets, ou os posts de Facebook. E mesmo os críticos que sempre escreveram nos formatos longos e intermédios, se vêem hoje impelidos a usar o formato aforístico que desaparece com a espuma dos dias.
JO- Tem a ver com a proliferação de coisas, rapidez de imagens e com isto tudo gera-se uma perda de reflexão. Antes com os blogues escrevias uma coisa mais longa, aquilo ficava durante uns dias, o pessoal ia lá comentar. E alguém sacava o filme e ia vê-lo. Hoje tenho a impressão que se parte logo para outra. E tem a ver com os filmes que se fazem, também, que são propensos a isso.
É uma questão de performance, de quantidade.
JO – Sim, passar logo para o próximo filme, próximo texto. O filme ainda não acabou de dizer o que tem a dizer e queres passar logo dizer que viste o seguinte e o seguinte… É contraditório, é maravilhoso teres os filmes todos do John Ford disponíveis, mas depois do ponto de vista critico… vê-se tudo em quantidade e fica-se apenas à superfície.
JP- A tendência é sacá-los todos e ficam para lá num arquivo…
JO – Sim, e depois vês um, dizes uma coisa, uma frase no Twitter mas depois queres logo ver outro.
Creio que era o Adrian Martin que dizia, já não posso precisar, uma frase de que me lembro muitas vezes: “O cinéfilo não é aquele que vê apenas muitos filmes.” E vemos hoje miúdos que já viram uma quantidade absurda de filmes, mas depois têm dificuldade em “arrumá-los” de uma forma produtiva…
JP- Isso aconteceu comigo, quando tinha 18, 19 anos, via uma carrada de filmes e não retinha nada.
JO- Às vezes penso, como é que um puto de 18 anos tem capacidade de ver e entender os filmes todos do Oliveira, por exemplo. Não é? Parece quase contranatura…
Sim, mas isso que o João diz também é verdade. A cinefilia funciona também muito de forma anárquica e por vezes temos mesmo de ver as coisas assim, sem sabermos muito bem ao que vamos, e só depois, mais tarde, é que as coisas tomam um outro sentido.
JO- Hoje é muito comum veres um jovem falar sobre todos os filmes do Oliveira, de forma muito artificial, como se fosse o dono da verdade.
Eu noto hoje, mais do que há uns anos, muitos jovens começarem muito cedo a formar um dogma sobre o bom e o mau cinema, e depois ficam agarrados a uma cartilha que dificulta a contextualização e a abertura dos próprios filmes.
JP- Por isso é que um site como o do Joe Dante é importante. [Risos]
JO- Mas o período dos blogues, que durou uns 10 anos, dava tempo para essa troca de ideias. Eu lembro-me que lia muitos blogues e havia lá textos que hoje em dia já não são possíveis…
JP- Havia pessoas que tinham visto o filme e iam revê-lo para o comentarem…
JO – E gostavas de estar à altura daquilo e ias ver mais, pensar mais sobre o assunto.
Os blogues representam um momento da democratização da opinião e expressão sobre cinema onde os filmes ainda comandavam o que se dizia ou escrevia. Hoje, por vezes, parece que o filme nem é tão importante e que é a expressão em si, o seu estilo, a sua imediatez, aquilo que “comanda o jogo”.
Mas avançando… na sessão que vocês fizeram do White Dog (O Cão Branco, 1982) do Samuel Fuller, o José escreveu a folha e eu tirei este parágrafo:
“Almirante Reis, Lisboa. Nepaleses. Indianos. Índios. Chineses. Brancos. Negros. Prostitutas. Travestis. Chulos. Reformados. Cowboys. Idosos e idosas. Pares de namorados. Bebés. Tascas para o bagaço. Kebabs a 1 euro. Tocas indefinidas. Macaenses. A nova Portugália. Import-Export. Corcundas. Gigantes. Caga-tacos. Deformações. Desempregados. Inúteis. Génios. Engravatados. As pessoas mais bonitas do mundo. Bicharia medonha. Pombas. Dejectos. Animais de estimação. Meninas com o arco-íris no olhar. Desgraçados. O próximo prémio Nobel. Violência e Verdade. Acção. Pulsão de vida e pulsão de morte. Em Braga, onde hoje veremos o filme que Samuel Fuller teve logicamente de fazer depois de ter ido a várias guerras mundiais, ao Oeste dos westerns, à sujidade e às cruzadas jornalísticas e a todos os tipos de guerras travestidas, teremos de ir a um lugar como a roulotte do Zé das Bifanas (nome oficial: bar rolante arco-íris), no complexo desportivo da rodovia, paralelo à Avenida João Paulo II, para ficarmos imersos no caldeirão humano da diversidade e contradição, onde cada um é como cada qual e pode ser comido pelo meio.”
De que forma é importante para ti fazer um raccord entre a crítica a um filme e o espaço/tempo que o vai receber?
JO- Sim, é importante. Neste caso eu tinha lido uma entrevista do Jim Jarmush em que ele fala do Fuller. Ele diz que uma pessoa que só vê filmes não pode ser realizador. E partiu daí. Sinceramente, eu não acho que escreva grande crítica de cinema, tem mais a ver com aquilo que uma pessoa vive, com aquilo que tira dos filmes para a realidade. E acho que isso tem a ver com o filme e com a obra em geral do Fuller, e havia essa intenção das pessoas se localizarem em Braga e em Lisboa e perceberem que a obra daquele realizador está em certos lugares pelos quais uma pessoa passa todos os dias. Eu estava a escrever esse texto na Almirante Reis, já tinha visto o vídeo que o Tag Gallagher fez para nós sobre o filme, e eu parece que estava a ver o que ele dizia no vídeo: “prostitutes, pimps…” E se há Fuller na Almirante Reis, também haverá em certos espaços em Braga. A ideia não era falar do filme do Fuller, mas sim do que as pessoas podem ver no dia-a-dia, que tem a ver com o seu universo. Agora, não é uma crítica analítica, é mais uma relação com o ambiente. Não sei se a crítica é isso, tentava pelo menos passar uma imagem. Normalmente é um dos meus problemas: o que vais escrever acerca de um filme do Fuller sobre o qual há milhões de pessoas que já escreveram? O Gallagher tem um livro sobre o Fuller, e depois vens tu e vais analisar os planos, a montagem, ou outras coisas que ele já escreveu de forma muito melhor do que alguma vez tu poderias fazer? Não faz muito sentido…
Como é que vocês descrevem uma boa crítica de cinema? No teu filme, José, o Sem Abrigo, tu roubas um livro do Manny Farber e vais ler para o bosque.
JO- Não sou um grande leitor de crítica de cinema, mas do que conheço, e para me centrar no Samuel Fuller, o João Bénard da Costa falou muita da montagem e depois há um texto magnífico do Miguel Marías na Foco que resume todo o cinema do norte-americano. Mas em geral, um bom texto crítico é aquele que encontra o contexto, uma imagem que possa ser proveitosa para o filme. Uma obra que possa ter cinquenta anos e ainda assim dizer-nos coisas hoje. Eu acho que a crítica tem uma relação cada vez menos forte com a realidade. Os filmes vêm da realidade, ainda para mais estes cineastas norte-americanos de uma vaga mais social, que falam dos problemas da sociedade, de um certo meio, certo tipo de pessoas. Quando escrevo depois também tento falar um bocadinho dos planos, da montagem, da dramaturgia. Mas é sempre importante essa relação com o real, pelo menos são esses os textos que mais me interessam.
JP- É importante que um texto tenha elementos concretos, de coisas que se passam durante o filme, planos, sequências, olhares.
JO- Por exemplo, para dar um exemplo português, o Tiago Ribeiro. As pessoas pensam que ele só está na brincadeira mas ele procura muito nos seus textos encontrar um paralelo com a realidade. Por vezes cai no ridículo mas porque a própria realidade é ridícula. Mesmo o Luís [Miguel Oliveira] também tenta fazer isso.
A crítica evoluiu muito para esta necessidade obsessiva de avaliação, esta ideia de separar coisas a todo o tempo. No meu caso, os críticos que mais me intrigam, que mais me levam a ler os textos, são aqueles que usam os filmes para falar sobre as suas próprias obsessões enquanto pessoas, enquanto cinéfilos… São pessoas que a certa altura tu deixas de seguir as opiniões sobre o filme A ou B e começas a interessar-te por aquela pessoa enquanto autor, enquanto escritor. Sentes carinho, identificação, admiração pela voz daquela pessoa, que se apropria dos filmes para falar das coisas que lhe são importantes. Não sei se sentem isso, que às vezes se parte dos filmes e se chega a outra coisa.
JP- Sim, acho que é inevitável, as pessoas passarem a sentir isso.
JO- Sim, o Daney é um desses casos, muito ligado ao que acontecia na época. Vais aos textos dele e às vezes percebes muito mais daquele tempo do que se leres coisas de história. A situação em França, a guerra da Argélia. Lês os textos mais longos e muitos deles iam desembocar no presente do seu tempo.
JP- Acho impossível tirar mesmo esse lado mais pessoal da crítica de cinema. Só se for um formato jornalístico, mais anónimo…
E outros críticos marcantes para vocês?
JP- Ultimamente dois, Robin Wood e Jacques Lourcelles. O Robin Wood era incrível, atirava-se a tudo… Tentava-se manter mesmo a par dos tempos e exprimir a opinião dele sobre a forma como o cinema reflectia a sociedade e vice-versa. Eu acho que os textos dele são geniais.
Vocês acham possível que ainda se possa escrever sobre cinema hoje como o fazia o João Bénard da Costa?
JO- Tu percebias que os textos do João Bénard da Costa nasciam de um mundo sólido, que aquelas referências faziam parte da vida dele. Hoje em dia é muito mais fácil perder-se, acho que os críticos estão hoje muito mais perdidos. E eu, eu estou completamente perdido. Não há tanta concentração, tanta urgência.
JP– As necessidades das pessoas satisfazem-se noutras coisas hoje.
JO- E para não falar das convicções fortes do Bénard, o acreditar. Era um homem profundamente religioso, não tanto no sentido católico, mas de acreditar nas coisas. Hoje em que é que se pode acreditar num mundo como este?
Parte da força dos textos do João Bénard era um pouco esta coisa dele ter-se colocado no centro do cinema, a sua vida era perpassada pelo cinema por todos os lados. E hoje, essa relação com os filmes, ou essa “arte de amar” os filmes é muito mais difícil. Quanto mais não seja por causa dessa dispersão, dessa proliferação de imagens e onde cada uma tem uma menor importância.
JO- E também estava rodeado de pessoas que acreditavam profundamente, que tinham convicções fortes, o Ford, o Oliveira. Estes clássicos não tinham estes problemas existenciais, e ele pertencia a esse mundo. Os grandes textos dele são sobre o Ford, o Bresson, o Hawks, pessoas muito fortes, muito sólidas. E por consequência disso os textos dele também acreditam muito. Eu acho que hoje um jovem pode muito bem ler um texto dele e achá-lo ridículo.
Não há pontos de identificação…
JO- Aquela fé que ele tinha. Como ele dizia no Ordet (A Palavra, 1955) que tinha visto alguém ressuscitar e que acreditava. Que aquilo não era um filme, que era verdade. Ele escrevia isso. Já hoje em dia é muito comum um jovem rir-se de um clássico, uma comédia do Capra, por exemplo. Eles já não pertencem a esse mundo.
JP- Mas eu acho que os textos ficam. E que há gente que acredita hoje e vai acreditar amanhã.
Independentemente dos textos sobreviverem, importa perceber que num momento em que tudo é posto em causa e descartável, essas relações convictas e que envolvem tempo e disponibilidade não só para amar um filme mas para nos identificarmos com o projecto global de um dado autor, e que implica uma visão do mundo, estão postas em causa. Parece que podes ir buscar uma coisa aqui e acolá, mas que te falta uma grande envolvência, uma noção de uma obra mais homogénea que implica um dado olhar sobre a realidade. Parece que só estão à vista as pedras sem os andaimes e estamos divididos nesta absoluta anarquia de se gostar de tudo e de não se gostar de nada.
JP- As pessoas rirem-se no final do Ordet tem a ver com as expectativas que as pessoas têm do que deve ser um filme. Não estão abertas à diferença. Mas não se deve levar a mal isso, o que interessa é que todos podemos mudar.
Já falámos dos posts e das redes sociais. A isto há que adicionar que a internet também permitiu juntar a crítica de cinema e academia e os ensaios mais longos nesse registo. Que espaço vocês acreditam ainda haver na internet para estes textos de dimensão intermédia de uma, duas páginas, sobre um filme?
JO- Não sei se vão continuar. Agora, uma coisa que me preocupa é a forma como os textos dos blogues podem de repente desaparecer. Um exemplo, o blogue do Bruno de Andrade, O Signo do Dragão. Quem for lá pesquisar, encontra grandes textos ou grandes comentários, análises. Aquilo para mim é crítica. E às vezes estão na caixa do comentário, isto só mesmo quem for geek é que lá vai… Há parágrafos do Miguel Marías ou do Bruno enormes e aquilo são textos, em alguns casos grandes textos. Textos analíticos, com imensas ligações entre filmes, passados, presentes… A mim preocupa-me que isso vá desaparecer. Quem recolhe isso? Será que poderá haver uma antologia desses textos? Ou alguém já fez essa recolha? Não se sabe e preocupa-me pois para mim há lá textos magníficos. E noutros blogues, mas o do Bruno é paradigmático. Às vezes vamos a um post de 2004 que nem texto tem, é só uma imagem e de repente alguém comenta qualquer coisa e o Bruno escreve 50 parágrafos, o Marías 100.
JP- São debates autênticos.
JO- Houve posts em que aprendi imenso, tanto como num texto do Daney ou do Bénard. E hoje isto está num limbo, com hipóteses de desaparecer… Era importante que alguém tratasse disso. Para mim as coisas mais interessantes que se passaram no panorama crítico nos últimos anos quinze anos li-as nestes blogues… Brasileiros, o Bruno, mas também o Sérgio Alpendre, o Filipe Medeiros… Portugueses, o do Tiago Ribeiro e do Daniel Pereira, o Miguel Domingues, o Álvaro Martins…
JP- O João Gonçalves… Três anos de trocas de impressões com estas pessoas antes do Facebook, foi importante.
Outra coisa, o que sentem em relação à moda dos ensaios audiovisuais? Vêem-se a usar esse formato crítico ou não?
JP- Eu neste momento não tenho meios para isso. O meu computador vai abaixo, não tenho Final Cut. Mas tenho interesse…
JO- Sim, há coisas muito boas, os vídeos do Tag Gallagher, por exemplo. É crítica, ponto. E são filmes por si próprios, além do mais.
Sim, há uma grande flutuação conceptual do ensaio audiovisual poder ser qualificado como crítica, como ensaio, ou pura e simplesmente, cinema.
JP- Lembrei-me agora do Thom Andersen, o do Los Angeles Plays Itself (2003). A imagem ajuda a encontrar novos sentidos para as coisas, a exprimir um ponto de vista, a jogar com o filme. O Joe Dante também faz isso [Risos]. Conta que nos anos 60 ele ia para as universidades americanas e punha um filme a passar num projector e outro projector com uma bobine de programas de televisão, anúncios, séries. E ia trocando, como uma espécie de DJ set. Creio que vai passar por aí a nova crítica de cinema, que já não é nova.
JO- Sim, não é nova… o Godard.
Hoje o cânone do cinema ameaça desintegrar-se, pelo menos enquanto composto por obras fechadas com princípio, meio e fim: os jovens já não vêem filmes completos, nem em casa nem nas universidades; vê-se sobretudo os clipes no YouTube; partes de filmes, gestos, olhares, frases, cenas circulam como gifs ou outras formas de expressão nas redes sociais; o cinema migra para as galerias e os video games. Acham que a relação que vamos no futuro ter com o cinema passará menos pelos filmes e mais por estes fragmentos?
JO- Não sei…pelo menos a nossa tarefa no cineclube é “combater” um pouco esse estado de coisas.
JP- Eu acho que não vai acontecer. As coisas que ficam, ficam…
Claro que as coisas não se eclipsam, mas falo de tendencialmente as pessoas passarem menos a ter como referência filmes e mais fragmentos do cinema.
JP- Um filme não é tão difícil de aceder como os livros. Bom, claro que depois é sempre uma coisa progressiva e haver coisas ainda mais fáceis.
JO- Sim, no cineclube já nos aconteceu pessoas dizerem que até veriam uma curta mas um filme longo não têm pachorra. Sim, concordo que isso da duração e do fragmento possa ser problemático e que se possa mudar o paradigma.
Penso que é isso que está em questão quando se fala da “morte do cinema” ou de um “cinema expandido”. Havia coisas fechadas em obras – os filmes- e hoje esse fecho parece ter menos importância e as pessoas vão lá buscar apenas aquilo que “interessa” (horrível palavra quando falamos de arte). Um pouco aquilo que já sucede com o Google Books que te permite ir aceder a esta ou aquela frase, em específico.
JP- Ok, eu mudo a minha resposta. [Risos] Eu quero acreditar que não vai mudar.
JO- Mas acho importante haver um trabalho como o nosso, que é no fundo um trabalho perdido: passar filmes num cineclube, traduzir textos clássicos, escrever folhas, ir atrás das pessoas para lhes pedir um vídeo… E depois no dia podes chegar a ter apenas 5 pessoas na sala. Mas mesmo assim, é uma vitória.
JP- Mesmo que fosse uma só pessoa, já era uma vitória.
JO- É um trabalho de resistência, mas que tem de ser feito.
Para terminar, acham que há, ou deve haver, diferenças entre escrever sobre um filme enquanto crítico e enquanto programador?
JP- Eu não tenho separado as coisas, não consigo, mas gostava de ser como o Langlois. Pura e simplesmente escrevo.
JO- Na escrita sobre filmes que estão em sala, o leitor pode não ser conhecedor de cinema. Enquanto que espaços como a Cinemateca creio que pode partir-se do pressuposto de que as pessoas já sabem mais sobre cinema e pode comentar-se o filme mais a fundo. Apesar de tudo, com esta coisa da programação aprendi sobre isso. Agora quando escrevo uma folha de um cineclube tenho mais preocupação com o contexto. Se for no meu blogue não tenho essas preocupações, entro logo a fundo. E não me importa porque aquilo no fundo é para mim. Nos textos de programação há esse lado mais didáctico, não sei… São textos para as pessoas perceberem que as obras não caem do nada, assim como eu gosto de ler uma folha com indicações sobre história da música quando, por exemplo, vou a um concerto.
Muito bem… Ficamos assim. Muito obrigado aos dois por esta conversa.