Um dos aspectos mais poderosos do cinema de James Gray é a capacidade de nos colocar em contacto com o seu olhar limitado, verdadeiro – os adjetivos são dele –, no qual um dado universo ficcional se reclama, acima de tudo, de uma preservação emocional, na maioria das vezes no contexto de um universo familiar. Pensemos no duelo de irmãos de We Own de Night (Nós Controlamos a Noite, 2007), no sacrifício pela libertação da irmã por parte da personagem de Marion Cotillard, a protagonista de The Immigrant (A Emigrante, 2013), ou na importância da mãe para a personagem de Mark Wahlberg em The Yards (Nas Teias da Corrupção, 2000), entre outros exemplos. Seja numa certa tradição do gangster film e o seu drama masculinizado, seja num ambiente de reconstituição histórica, a tensão familiar é motor que aproxima o espaço e secundariza os pormenores da trama.

Talvez seja por isso que, quando chegamos a The Lost City of Z (A Cidade Perdida de Z, 2016) e a Ad Astra (2019), a preservação destas relações tenha mais dificuldades a impor-se nesse referido processo de “aconchegamento” do local da acção, sendo este tão disperso e vasto como a Amazónia e o espaço sideral. O épico não tem como não se impor, mesmo talvez contra a vontade de Gray, diante do íntimo. O que não deixa de ser interessante pensar, então, como pode ser diferente a forma que cada cineasta tem de procurar uma grandeza como intensidade. No caso de Gray, parece que o épico que lhe é natural é da ordem do interior e que o armagedão seria nada mais do que uma luta interna, o achamento de um ponto de vista que seja um ponto de vida, o posicionamento diante de futuras escolhas. É o que temos em Armageddon Time (2022), sua oitava longa metragem.
O lançamento é um sucesso: o brinquedo sobe com rapidez e desce com suavidade. Essa alternância dá bem conta da amplitude do que sentimos quando Gray afina a intensidade do drama em torno das suas personagens. O melhor Gray é assim: fugaz, forte, mas com a subtileza de uma revolução interior.
Feito em período de Covid19, este é um dos seus filmes mais caseiros e onde essa dimensão familiar ganha uma expressão autobiográfica. Estamos em Queens, Nova Iorque, no início dos anos 80 de uma América atravessada pelo conservadorismo de Reagan. Nela, o jovem Paul Graff (Banks Repetta), alter ego de Gray, cresce, vivendo os típicos momentos de encruzilhada. Na escola (pública), o professor exerce a arte vazia da disciplina e o desejo de pintar do jovem Graff apenas encontra cumplicidade na transgressão de Johnny (Jaylin Webb), um rapaz mais velho, repetente, negro, que é saco de boxe e discriminação do dito professor. Em casa, Gray descreve com detalhe o ambiente de caos e amor da família de Graff, entre a compreensão da mãe (Anne Hathaway), as ambições que o pai canalizador (Jeremy Strong) deposita nos filhos e o homem com quem tinha afinal uma afinidade maior, o seu avô (Anthony Hopkins).
Gray conta que o pai, que, entretanto, morreu de Covid19, não chegou a ver Armageddon Time, o que foi, de uma certa forma, um alívio, pois não saberia como teria reagido a um filme tão colado à verdade do seu passado. É uma obra onde está plasmado o olhar adolescente de Gray sobre os detalhes do seu quotidiano familiar, mas também em filigrana todas as “preocupações” do momento, ligadas a um sistema de classe, privilégio e discriminação. A família de ascendência judaica procura formas mais seguras de integração: a dado momento, após um episódio de indisciplina (uma ganza na casa de banho da escola partilhada com o seu indesejado amigo) é convencido a seguir as pisadas do irmão mais velho, e mudar para uma escola privada. Aqui, os estudantes envergam uniforme e procuram um primeiro espaço de distinção que irá ser um mantra de trabalho e ambição para o resto da vida.
Mais do que funcionar como um mero sistema de denúncia das desigualdades deste período, o filme de Gray encena a forma como essa desigualdade funciona por camadas (os judeus, sendo discriminados, não o eram como os negros) e onde mesmo um canalizador pode afinal ser alguém privilegiado. Pela primeira vez a filmar em digital, as cores sujas e esbatidas de Darius Khondji ajudam a perceber a diferença face à esquizofrenia humorada da Nova Iorque de Woody Allen. Também não é um filme nostálgico de um passado ou amargo como a infância de Antoine Doinel em Les 400 Coups (Os Quatrocentos Golpes, 1959). Isto apesar de vários momentos parecerem citações do filme do Truffaut, sendo a mais evidente a cena do furto de um computador e a consequência da ida à prisão. Talvez seja o olhar radar, magnético, à procura de resposta, aquilo que une ambos os filmes.
Mas volto à ideia do épico interior. Toda a démarche de uma mudança de escola para Paul contém em si deslocações difíceis de qualificar. Entre elas, o abandono de uma amizade e o que isso implica; o luto e a perda; a mudança de um ponto de vida onde essa ambição artística não cabe; a fuga e a transgressão; a coragem e a cobardia, ou a “sorte” de ficar do lado dos sobreviventes.
E, por fim, a escolha.
A presença do colégio privado, onde vários membros da família de Trump andaram, é real e pertence ao passado do realizador. Embora sem conclusão assertiva – o cinema de Gray não é de propostas – não deixa de ser poético ver nesse final – em que o jovem abandona as festividades do colégio onde se fala da responsabilidade dos alunos como futuros CEOs, juízes, governantes – a metáfora de uma escolha, já adulta, por uma vida outra, uma vida onde a arte tem lugar. Quem segue o percurso de James Gray percebe como essa integridade da beleza e da verdade na arte é esse caminho que deixou, para trás, na “sala da festa”, as preocupações quantificáveis, a obsessão pela mensurabilidade industrial, económica, dos seus filmes.
Por fim, ainda, o calor do cinema como casa.
Não há cena que melhor explique esse desejo dos seus filmes preservarem um amor e uma intensidade da emoção familiar, do que a cena, belíssima, que antecede a morte do avô de Paul. Aquele havia-lhe oferecido um foguetão às peças para montar. Agora, o engenho estava pronto e é o momento do seu lançamento no parque. O jovem estava nervoso, com medo que algo corresse mal. O avô, Hopkins, medindo a intensidade da voz envelhecida e o ângulo do seu olhar bondoso, prepara a notícia de uma “viagem” em que deverá partir em breve. A travessia é dupla, portanto. O lançamento é um sucesso: o brinquedo sobe com rapidez e desce com suavidade. Essa alternância dá bem conta da amplitude do que sentimos quando Gray afina a intensidade do drama em torno das suas personagens. O melhor Gray é assim: fugaz, forte, mas com a subtileza de uma revolução interior.
Armageddon Time (2022), de James Gray, está disponível para visionamento no Videoclube NOS.