Já não me lembro onde ouvi isto, mas até acho que ouvi mais do que uma vez, dito por diferentes actores. Dizia(m) o(s) actor(es) ou actriz(es) que a sua principal inspiração para o papel em questão (não me lembro!) tinha sido, durante a rodagem, o próprio realizador, absorvendo cada jeito e trejeito do director e, secretamente, reenviado-os, ou levando-os a jogo, para o tecido da ficção. O que se passa em Italianamerican (1974), um documentário de uma liberdade e de uma crueza formal desconcertantes, é que ficamos com a sensação que os principais “figurões” do cinema de Scorsese são imitações mais ou menos coladas à pele não do realizador, mas de seus progenitores. Desde os primeiros instantes, estamos num filme de Scorsese: filmado à maneira de uns irmãos Maysles ou de uma Shirley Clarke, a obra começa, impromptu, sem grande planificação ou clara orientação ao nível da direcção, com um algo inseguro (na aparência) Martin Scorsese a pedir ao seu “câmara” para filmar Catherine e Charles Scorsese de uma certa maneira. O show é dela desde o primeiro instante, “destruindo” a mise en scène que estava aparentemente preparada para a cena inaugural: “Porque é que estás aí?”, pergunta Catherine, entre o tom de gozo e de reprovação, para o seu marido, ambos sentados no sofá da sala. Ele, atrapalhado, lá se aproxima dela. Pai e mãe de Scorsese, filmados não como “somente” pai e mãe, mas como “primeiros autores” de toda uma obra? Será esse o verdadeiro assunto deste filme? É aos pais que Marty regressa depois de filmar a obra que define e definirá todo o seu estilo, onde está contido tudo o que fará de Scorsese uma marca e uma receita de sucesso no contexto da Nova Hollywood. Falo de Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973).

O pretexto é o de se fazer um filme sobre a famosa receita de “tomato and meat sauce” da mãe, que tem direito a ocupar grande parte dos créditos finais do filme. No entanto, este é apenas um motivo para Scorsese nos mostrar os “interiores” do seu mundo-em-construção. Os primeiros obreiros do cinema de Scorsese são eles, pai e mãe, os dois em diálogo e “em choque”, mistura explosiva de comédia screwball com a crueza e violência do documentário de guerrilha, “câmara ao ombro”. São eles, então, Charles e Catherine Scorsese. Quer dizer, como se vê pela primeira cena “dominada”, bem a partir de dentro do plano, pela mãe, a ordem certa é mesmo: Catherine e Charles Scorsese. Aliás, Catherine acabaria por entrar em vários dos filmes de Scorsese, ficando na memória o papel de mãe de Tommy (Joe Pesci), em Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990), a sua última e talvez a mais relevante aparição como actriz (secretamente) preferida de Scorsese. E é de Pesci que me lembro mal começo a ouvir Catherine a “dominar cada cena”: apresentação rígida (cabelo laqueado, óculos pesados), a ser desfeita ou contrariada pelo sorriso escondido, sempre pronto a despontar; voz aguda, quase lancinante; tiradas cómicas metralhadas à velocidade da bala, misturadas com observações laterais, por norma, jocosas e, enfim, uma incrivelmente dinâmica e moderna mordacidade a “contar” cada aspecto da narrativa familiar. Porque, lá está, passamos rapidamente da receita do molho de tomate e das almôndegas para as origens desta família siciliana, muito pobre, tentando sobreviver na “terra das oportunidades e da abundância”, onde chineses, irlandeses, italianos e africanos misturam culturas e hábitos como quem ousa acrescentar um ingrediente ou outro àquela receita “segura”, que nunca falha.
Não se trata, aqui, na “casa do documentário”, de saber receber alguém, mas de saber ser recebido pelo outro, na sua casa, de deixar que essa estranheza seja um catalisador (quase burlesco) da conversa, propiciando revelações várias e principiando-nos na (re)descoberta de velhas e novas…. receitas.
A receita era de molho de tomate e almôndegas e passa a ser da família Scorsese ou mesmo de toda uma comunidade, a “italo-americana”. O que faz Scorsese para ser assim? Vêmo-lo, algo impotente, a cofiar a barba de apreciável densidade [que merece um ou outro comentário depreciativo do pai Charles, mas será que ele não viu The Big Shave (1967)?] e a ler as suas notas (que parecem ser abundantes, mas não o conduzir a lado nenhum). Só que a decisão principal do filme é, de novo, e repito-me, à laia de uma Shirley Clarke (influência algo negligenciada na exegese scorsesiana), “deixar rodar”. E é isso que acontece: a conversa vai-se alimentando a si mesma e ao filme. Scorsese percebe ou vai percebendo que a sua tarefa é uma e apenas uma: ouvir, deixando que Charles e Catherine ou Catherine e Charles tomem as rédeas da acção.
“O estilo é o homem”? Aqui, “o estilo são eles, os pais do homem”. Para se perceber melhor o gestus do Scorsese documentarista dos primeiros anos, importa darmos um salto de 4 anos, até ao pouco visto, mas, a meu ver, particularmente importante American Boy: A Profile of – Steven Prince (1978). Este documentário algo escondido na filmografia de Scorsese foi, a meu ver, o resultado de qualquer coisa que foi iniciada ou ensaiada antes, em Italianamerican: a ideia de que o grande cinema é aquele em que o drama vem from within, a partir daquilo que se encontra “no momento”, candidamente, e nas profundezas de quem somos – daí a ideia do “profile” ser importante. Steven Prince é um actor pouco conhecido, mas “tem histórias”. E Scorsese quis fazer um filme sobre a personagem-que-ele-é, um “ser assim” realizado ou interpretado sem esforço, como se o cinema – o filme scorsesiano – estivesse todo ele contido, como receita, nas vivências (re)contadas por este actor ou na maneira como ele narra essas histórias quase sempre violentas, algo escabrosas, envolvendo vícios vários [a história da overdose acabou recriada no campo da ficção por Quentin Tarantino em Pulp Fiction (1994)] e, talvez, uma caricatura da América como um eterno faroeste sem lei [Prince entrara em Taxi Driver (1976) interpretando o traficante das armas que municiam o ataque/massacre final do filme]. De novo, parece que tanto a ficção mais horrífica como a comédia mais delirante e enternecedora tiveram, antes de mais, como principal origem e fonte a vivência e biografia pessoal do seu autor – a mensagem que queria deixar, neste texto, é mesmo a de tentarmos redescobrir Scorsese como um cineasta do documentário antes de da ficção.

Ao mesmo tempo, American Boy é também um filme sobre o próprio acto, e crueza, de se querer aceder imediatamente ao encontro com uma personagem/actor-da-vida-real: se o início é digno do mais intempestivo John Cassavetes – com Steven Prince a entrar na casa onde o filme será rodado à maneira de um Rambo, atirando-se para cima do proprietário da residência como se fosse um meliante ou um lutador de wrestling, e a câmara, claro, keeps rolling -, o final devolve-nos a Shirley Clarke e ao seu tratado da problemática documental Portrait of Jason (1967), pois acabamos por sentir, de maneira violenta (uma violência mais da ordem da retórica fílmica), a mão que dirige aquela pessoa/actor/personagem – Scorsese pede a Steven Prince para repetir várias vezes a mesma história envolvendo o seu pai, “modulando”, assim, o tom e gravitas a cada novo take. O filme mostra-nos a costura deste trabalho quase subreptício, e algo capcioso, da direcção; tudo o que parecia autêntico acaba por nos parecer, no fim, resultante de uma meticulosa preparação e encenação. Scorsese conta que, nesta altura, frequentava vários clubes de comédia, sendo a stand-up comedy uma influência tão importante, pelo menos nesta altura da sua vida e obra, quanto todos os Rossellini, Fellini e Orson Welles do mundo.
Em certa medida, Italianamerican é um grande naco de stand-down comedy. Uma comédia familiar condimentada por várias estórias que contam uma parte importante da grande história americana e do seu bem ácido-picante melting pot. Toda a América cabe no tacho de Catherine como cabe na sua extraordinária capacidade de reacção face à intromissão da câmara documental guiada (pouco? Muito?) pelo filho. Aliás, há um aspecto delicioso neste filme que se prende com a ideia de “invadir” uma casa familiar e ver como os seus membros reagem à presença de convidado tão intrusivo e rude, que pouco ou nada diz, que se limita a esperar por alguma coisa que ninguém sabe bem o que seja. Este convidado que não parece saber (a) nada – convidado sensaborão? – é o motor do drama do filme, sendo, portanto, Italianamerican uma lição de cinema documental, pois não se trata, aqui, na “casa do documentário”, de saber receber alguém, mas de saber ser recebido pelo outro, na sua casa, de deixar que essa estranheza seja como um catalisador (quase burlesco) da conversa, propiciando revelações várias e principiando-nos na (re)descoberta de velhas e novas…. receitas.