Resgatar filmes mal amados é uma actividade compensadora, pois liga para sempre o recuperador à reavaliação da obra. Além disso, dá um prazer especial (re)descobrir o que mais ninguém viu (ou quis ver). Escrito isto, ainda ninguém conseguiu recuperar Ishtar (1987), o enorme fracasso comercial e crítico de Elaine May com Warren Beatty e Dustin Hoffman. Não vou tentar fazê-lo, apesar de a reputação do filme ser injusta. É desequilibrado, em muitos momentos deambula sem rumo, a resolução é atabalhoada, e, ainda assim, é suficientemente divertido para ser considerado um falhanço simpático.
Elaine May foi quem mais sofreu com o descalabro. Não só este a “impediu” de voltar a realizar como soterrou, de algum modo, os seus restantes filmes. May teve ou terá tido culpas nesse cartório: perfeccionista, diz-se que filmava take a seguir take, recusando-se a abandonar uma cena até estar como queria, aumentando o número de dias de rodagem e os custos de produção para níveis incomportáveis para os estúdios. O desastre em Ishtar foi maior pois os actores eram muito bem pagos e, pelos vistos, bastante intrometidos (Beatty, principalmente). Por outro lado, os métodos de May, iniciada na comédia de improvisação, originavam um humor titubeante e nervoso, meio desconfortável, meio desagradável, num ritmo lento e arrastado, pára-arranca, porventura demasiado estranho para a maioria dos espectadores. Pegando no seu Mikey and Nicky (Jogo Mortal, 1976), o melhor Cassavetes feito por outra pessoa, poder-se-ia escrever que May está para a comédia como este estava para o drama.
Parceira de Mike Nichols num famoso duo cómico dos anos 60, Elaine May escreveu vários argumentos [Heaven Can Wait (O Céu Pode Esperar, 1978), Birdcage (Casa de Doidas, 1996)], foi actriz em outros, sendo mencionada como influência por muitos cómicos posteriores, de Steve Martin a Lily Tomlin. No que toca à realização, teve, pelo menos, um sucesso: The Heartbreak Kid (Casei-me por Engano, 1972), único dos seus filmes para o qual não escreveu o argumento, assinado por Neil Simon, dramaturgo muito querido em dada altura (e pouco lembrado agora). Mas se o filme consta da lista das melhores comédias do American Film Institute, não está na ponta da língua de ninguém quando o assunto é a comédia norte-americana (o remake dos irmãos Farrelly nem sequer levantou a onda de indignação habitual nestes casos) – Joe Swanberg é a excepção entre os cineastas mais novos, citando-o auditivamente no seu Happy Christmas (2014). Um esquecimento incompreensível a não ser à (funesta) luz do insucesso de Ishtar.
O tipo de humor de May encontra o intérprete ideal no genial e subvalorizadíssimo Charles Grodin que protagoniza de The Heartbreak Kid, em permanente demanda pela “felicidade”, por uma “vida mais realizada”, traduzida na perseguição incessante da (de uma) mulher ideal (ou melhor, do prazer da conquista). A seu lado, a filha da realizadora, Jeannie Berlin [uma versão um nadinha mais vivida da personagem inocente e trapalhona de May em New Leaf (Vida Nova, 1971), a sua primeira obra], não menos brilhante como mulher rejeitada (e crescentemente rejeitável). E a irradiação solar chamada Cybill Shepherd, novíssima, belíssima e (quase) inatingível – nem em Last Picture Show (A Última Sessão, 1971) foi assim apetecível, como naquela cena em frente à lareira, despida sem que o espectador possa ver a nudez (quanto mais tocar-lhe). A presença de Grodin é importantíssima, pois, mais do que uma comédia de costumes (provavelmente a ideia original de Simon), The Heartbreak Kid é a comédia negra de uma personagem insuportável, insaciável, irritante, um bullshitter compulsivo, tão convicto das suas tretas ao ponto de acreditar nelas. A cena ao jantar, quando fala da honestidade da comida, é exemplar – e tem o contraponto perfeito noutro actor mal amado, Eddie Albert da série Green Acres. O aparente happy end é dos finais mais ácidos em qualquer comédia, a vitória do protagonista a sua maior derrota.
Charles Grodin, como se pôde ver na última temporada de Louie (na personagem do médico rezingão), é dos cómicos mais desagradáveis, na linha de um Bill Murray. Criou assim a sua persona pública: um dos divertimentos favoritos era arreliar Johnny Carson no Tonight Show sem o público perceber se estava ou não a brincar. Só não foi alvo de canonização semelhante à de Murray (merecida em qualquer dos casos), sendo lembrado sobretudo pelos Beethovens do São Bernardo. Dá pena. Como dá pena a falta de memória em relação a Elaine May. Qualquer destas injúrias pode ser (ligeiramente) remediada vendo ou revendo The Heartbreak Kid. É, por isso, um dever.