There are two kinds of poor boys in America – The Tom Sawyers and the Huckleberry Finns, and Hollywood is full of examples of each who have reached the top in pictures. It would be easy to make this more exciting by putting myself down as a Huck Finn, but it would not be true. I was a good example of a Tom Sawyer…
Harold Lloyd na sua autobiografia An American Comedy
“O riso, no fundo, é o tédio da ordem e da lógica das coisas.” A frase é de Vinicius de Moraes e escreveu-a a propósito da série Topper e de Buster Keaton numa crónica de 26 de Outubro de 1941 para o Jornal A Manhã. Não querendo desmentir o poeta apaixonado pelo e do cinema, estou em crer que Harold Lloyd é um nome que em parte desmente, e noutra alarga, a citada afirmação. Lloyd faz rir muito menos no acto da desordem e do gesto ilógico – aquele que é sistematicamente apontado como sendo o lado mais político do riso, a irrisão anárquica do “sistema” – do que quando o faz através da precisão da ordem e da elegância da lógica, aliás, talvez seja o segundo caso aquele que melhor o define, o humor da correcção e do acerto, a certeza dos movimentos aparentemente incoerentes, a habilidade graciosa nos gestos mais desconexos – nunca se montou uma taça de gelado com tanto encanto como em Speedy (1928) – e é exactamente através dessa perfeição do gesto que surge a irrisão e o acto político.
Note-se, no entanto, e sem desmerecimento, que esta arte do corpo é aquilo que para sempre distinguiu o cinema silencioso do que a ele se seguiu. Pode-se então dizer que nesse cinema o actor e o seu corpo tomavam a rédea da câmara e dominavam o olhar do espectador, um cinema feito da dinâmica entre a fisicalidade da presença e a atenção da audiência a ela – e no acompanhar de cada volteio do intérprete com a vista, os glóbulos contagiam o maxilar, a boca descaia pasmosa e a admiração faz gargalhar convulsivamente. Os palhaços silenciosos do cinema tinham então esse domínio cirúrgico do corpo, controlavam o momento cómico ao infinitésimo e toda a sua arte fílmica se escondia no desempenho. Talvez por isso mesmo Harold Lloyd nunca tenha sentido a necessidade de assinar qualquer dos seus filmes, porque se a realização era de outro (e foram vários) também é verdade que a sua autoria não podia ser negada pela evidência da sua presença (cómica) – o corpo como assinatura é a evidência do cinema mudo e o reflexo da autoria em Lloyd. Não deixa, no entanto, de ser esse um dos motivos que levam à pouca atenção dada a Lloyd ao longo dos anos, relegando sistematicamente o seu génio para terceira posição, depois de Chaplin e Keaton (e por vezes até para quarta depois de Langdon) – mas deixo para mais tarde as considerações sobre o desinteresse e a pouca visibilidade de Lloyd na crítica e na cultura popular contemporânea.
Se de facto o corpo e a arte de o fazer mover definem e assinam as obras de cada silent clown essas assinaturas variam na caligrafia, na cor, na tinta e na estabilidade da mão que a desenha. O propósito deste texto é pois o de identificar essas características definidoras, uma espécie de estudo grafológico onde, ao invés de se reconhecer o carácter de uma pessoa através da sua escrita, se pretende procurar e encontrar o que há de significante num personagem cómico (neste caso o the boy with glasses de Lloyd) a partir dos filmes que protagoniza.
Mas talvez convenha começar por interrogar se existe de facto essa assinatura. Ora bem, para melhor esclarecer esta questão talvez seja de valor dar voz ao próprio Lloyd e aos que com ele privaram e trabalharam. Deste modo talvez se consiga perceber de que modo o seu processo permitia (ou não) que uma assinatura se manifestasse nos seus filmes. Questionado sobre o peso da sua mão na realização numa conferência na University of Michigan em 1966 respondeu: “There wasn’t a picture in which I wasn’t in on the direction. Some of them I directed entirely on my own because most of the directors were boys who had been gag men for me. I brought them in to direct a picture and made directors of them. Sam Taylor was a gag man and I brought him to direct. I never took credit, and I never have to this day, on the direction of a picture. On the production – producing it, yes.” Não se deve esquecer o facto de no anos 1960 a política de autores já vigorar em força (e nos Estados Unidos ter passado, através da influência e ingerência de Sarris, de política a teoria dos autores – ganhando por isso uma dimensão académico esvaziante de todas as outras formas de criação cinemtográfica), dando uma importância nunca antes dada ao realizador sobre o produtor ou a estrela – tendo por isso que se ler estas declarações com as devidas distâncias e perspectivas, no entanto note-se a entrada de Georges Sadoul no seu Dictonary of Film Makers onde afirma que Lloyd “was more artistically responsible for his films than Sam Taylor, Fred Newmeyer, etc.”. No entanto não deixa de ser verdade que a assinatura de Lloyd dos seus filmes é mais evidente através da sua mão na produção e na escrita (a qual também não lhe é nunca creditada). No que respeita à produção, as The Harold Lloyd Productions só começam com Girl Shy (1924), mas a colaboração com Hal Roach desde cedo foi sempre bastante equitativa no que respeita a poderes e decisões.
De facto, a produção própria permitia a Lloyd mais liberdade criativa que, nomeadamente, Buster Keaton que trabalhava sobre a unha da MGM – como o permitia também a Chaplin. Por exemplo, ambos os palhaços, em 1928, decidiram filmar Nova Iorque (em vez de recorrerem às afamadas stock footages como era costumeiro, por motivos práticos e económicos) para os seus filmes The Cameraman (1928) e Speedy. Só que Lloyd alargou o seu período de rodagem das previstas quatro semanas, para dez (como a produção era sua a decisão só a si cabia), ao passo que Keaton se teve que conformar com apenas algumas cenas e com uma rodagem essencialmente em estúdio – quem é portanto mais autor dos seus filmes? O que faz o que deseja, ou aquele cujo desejo se faz do encontro (ou encontrão) entre criador e estúdio?
Quanto à escrita recorro de novo a declarações do realizador, desta feita uma entrevista a Arthur B. Friedman: “We didn’t exactly call them writers in those days. They were called idea men, or gag men. (…) I kept a staff of from three to sometimes seven or eight[1]. We paid these men very good salaries. We never had a script in those days. (…) They’d throw ideas at me and then it was up to me to choose the ones that I thought would be most appropriate or the ones that belonged to the particular film we were doing. (…) But you had to rely upon your own judgement to recognize that particular [great] idea and I think that was one of my fortes in the comedy field. ” Assim temos que, à imagem da maioria dos filmes antes da introdução do som que sistematizou a produção no esquema industrial (com múltiplos funcionários cada qual com tarefas específicas e mutuamente exclusivas), os créditos dos filmes silenciosos de Lloyd são pouco fieis àquilo que era a sua participação criativa. Faz então sentido olhar para a sua obra como a de um actor-realizador-argumentista-produtor e não como apenas a de um hábil corpo amestrado na arte da comicidade cinematográfica – o que já não seria nada mau, convenhamos. Note-se, contudo, que há uma diferença de fundo entre o método-Lloyd e o método-Chaplin, quando o segundo era simultaneamente protagonista e realizador, este ensaiava em frente à câmara, de modo a poder assistir ao seu desempenho, fazer correcções e desenvolver a trama a partir de um gag central – a este respeito a série documental Unknown Chaplin é particularmente certeira ao desenterrar várias dessas bobines sobreviventes revelando o processo criativo de Chaplin: a mudança de actores, as cenas descartadas, a evolução do gag e o seu aperfeiçoamento… – ao passo que Lloyd, com um realizador atrás da câmara e uma trupe de gag men atrás do palhaço, partia para a rodagem mais próximo daquilo que seria por fim o filme.
Há, no entanto, que não levar demasiado a sério o que diz Lloyd (em modo algo revisionista – não se esperaria outra coisa…) e olhar os filmes e aquilo que neles difere quando na cadeira da direcção outro traseiro se assenta. O referido Roach só assinou one e two reelers e não se pode dizer dele mais que o perfeito mimetismo do estilo competente e apagado da máquina da Keystone de Mack Sennett – ainda que se refira que já nos filmes Roach-Lloyd se encontra uma maior dependência do plot em relação ao típico filme da Keystone. O referido gag man Sam Taylor realizou e co-realizou vários títulos com Fred Newmeyer (outro colega vindo da escrita), sendo o seu trabalho descrito por Andrew Sarris em Harold Lloyd: A Rediscovery em 1977 como tendo um “modulated style with quiet camera ironies worthy almost of Lubitsch or Clair”. Por outro lado, outro gag man promovido à cadeira de realizador, Ted Wilde, não pode ser tão brevemente despromovido do seu cargo em favor de Lloyd. Assinados por si são dois filmes de Lloyd, os seus dois últimos filmes silenciosos, The Kid Brother (1927) e Speedy. Ora bem, em ambos se nota uma evidente diferença de tom e de inventividade de câmara que os distingue da obra precedente de Lloyd e mais ainda da que viria depois com o som – que, pelo volume dos processos e necessidades de insonorização, dificultavam em muito aquelas que eram as grandes proezas de Lloyd; por exemplo as perseguições de automóvel: compare-se o final de Girl Shy ou Speedy com a tristíssima perseguição de Professor Beware (1938).
O caso de The Kid Brother, por exemplo, é particularmente evidente disto: de todos os filmes de Lloyd foi aquele para o qual contratou mais gag men, num total de oito, já que era sua intenção fazer o seu filme mais divertido, mais cheio de humor. No entanto, este é, de longe, o mais melancólico e romântico dos seus filmes, silenciosos e talvez dos outros também (sendo evidentemente a nostalgia um elemento que aproxima estes dois filmes e os distingue dos demais). Esta mudança de rumo deverá estar necessariamente ligada a uma força criativa externa a Lloyd, e essa força deverá ter sido Ted Wilde – Sarris nota no referido artigo a controvérsia entre académicos sobre a influência do segundo sobre o primeiro, influência que me parece evidente. Ora, a acrescentar a isto The Kid Brother foi também largamente realizado por Lewis Milestone, ainda que não tenha sido creditado [este que realizaria mais tarde All Quiet on the Western Front (1930)], quando Wilde ficou doente durante a rodagem (ainda que tenha abandonado o cargo devido a conflitos com outro estúdio) – é interessante que no mesmo ano de Speedy e de The Circus (1928) de Chaplin, Milestone venceria o primeiro, e durante largas décadas o único, Oscar de melhor realizador para uma comédia, Two Arabian Nights (1927). Aquele que é considerado por muitos como o melhor filme de Lloyd é, pois, uma manta de retalho de autorias, logo a começar pelo facto de ser assumidamente uma adaptação cómica de Tol’able David (1921) de Henry King que havia sido um enorme sucesso alguns anos antes (o qual Lloyd muito apreciava) e que Roach já havia refeito em comédia com The White Sheep (1924)[2].
Onde se encontra então o génio de Lloyd? Parece-me que aquilo que de mais genial há no trabalho de Harold aparece evidenciado neste dilema, a saber: a crença profunda na colaboração criativa – algo profundamente americano (e patente no seu fordismo cinematográfico), uma das características definidoras da sua assinatura. Este é, pois, mais uma achega à dificuldade de olhar Lloyd pelas lentes graduadas da política dos autores, onde o criador é senhor supremo das suas obras, dono daquilo tudo e controlador minucioso de cada instante – o que não deixa de ser verdade nos filmes de Lloyd se descontarmos a necessidade de colocar a origem da minúcia numa só figura, o realizador.
Com o sonoro outros realizadores se juntaram ao rol, de onde se deve destacar Leo McCarey [o realizador de An Affair to Remember (1957) ou Duck Soup (1933)] que dirigiu The Milky Way (1936) e Preston Sturges [Sullivan’s Travels (1941)] que realizou em 1947 o regresso ao ecrã de Lloyd (a anterior presença fora na sua última produção, Professor Beware) naquela que seria o seu último papel de protagonista, The Sin of Harold Diddlebock (1947). Se nesses se nota a mão dos seus realizadores, McCarey é mais meloso que qualquer outro e Surges mais ácido e cínico[3], não se pode deixar de notar que essas mãos que se nos parecem evidentes e distintas das demais foram também elas moldadas em parte pelo próprio Lloyd: por exemplo, Sarris salienta a influência que a famosa sequência da árvore em The Kid Brother terá tido em Sturges na escrita do argumento de The Power and the Glory (1933) que contém uma cena semelhante (e é conhecido a adoração deste por Harold), por outro lado, como não deixa de repetir Suzanne Lloyd (a neta de Harold e a maior divulgadora da sua obra), os filmes de Lloyd contém a semente da ‘comédia romântica’ que só se implantaria fortemente muito mais tarde (sendo grande parte do trabalho de McCarey uma antecâmara do que hoje é um género bem definido).
Tudo isto para tentar definir uma ideia de autoria que extravase a justaposição à realização, à escrita do argumento e mesmo à produção: a autoria nos filmes de Lloyd é uma que se faz sentir de forma subterrânea mas sempre presente, quer por influência directa do próprio, quer por referência dos que o admiravam – uma autoria dificilmente mensurável mas indelével. Neste sentido talvez faça agora sentido citar Luís Mendonça citando André Bazin aquando da morte de Humphrey Bogart, “Bazin escreve um artigo para os Cahiers du cinéma, «La mort d’Humphrey Bogart», onde procura fixar a assinatura da sua metapersona mítica. Para o crítico francês, Bogart vai trabalhando, de filme para filme, numa espécie de progressiva internalização das ideias de decadência e de morte, como que chamando a si, precisamente, a sua própria decadência e a sua própria morte. (…) Bazin propõe associar a Bogart não só uma alma, mas, mais do que isso, uma acção efectiva de cineasta sobre a sua obra.” Pois bem, o caso de Harold Lloyd é em tudo semelhante mas em sentido oposto, onde se lê progressiva internalização das ideias de decadência e de morte deve ler-se progressiva internalização das ideias de sucesso e satisfação profissional e amorosa – já que Harold soube muito bem usar narrativamente a sua bela e expressiva cremalheira, apetece-me dizer, depois de destas semanas de Lloyd, dele me ficam, acima de tudo, os dentes e as pernas, como se só isso bastasse para me envolver e me transmitir o que de mais profundo e cândido e também mais superficial e pateta existe na natureza humana. Propõe-se assim uma “política de actores” à Bazin, onde essa figura mítica antecede a mão do realizador e age sobre ele com esmagadora força criativa (algo próximo daquilo que Rappaport propõe quando olha para as carreiras de Rock Hudson e Jean Seberg, figuras e personalidades cuja obra parece ser sempre reveladora da sua biografia, da sua força criativa e da sua influência e inferência, como se, pela simples aparição frente à câmara, se convocassem na tela projectada tudo aquilo que eles foram, esconderam e mostraram, como se a lente conseguisse captar mais do que imagens testemunhas de existência, como se pela lente tudo se revelasse na farsa, uma máquina de verdade que não vê personagens, que só vê homens e mulheres, as suas histórias, vidas e mentiras – figuras que já não podem mais senão exibir o que são e o que escondem).
E chego a outra questão polémica no que respeita ao trabalho de Lloyd, isto é, é ele um cómico ou um actor de comédias? Ou pondo por outras palavras, a comédia é para ele uma dado a priori, ou é uma arte adquirida pela prática do gesto? Esta questão é levantada por vários críticos e académicos, mas também por colaboradores de Lloyd. Hal Roach disse que “Harold Lloyd worked for me because he could play a comedian. He was not a comedian. He was the best actor I ever saw being a comedian . . . No one worked harder than he did”, e Jobyna Ralston, uma das suas actrizes mais recorrentes, acrescenta a isto que uma simples cena de acender um cigarro elegantemente “required over five hours of filming! . . . It is the same in all Lloyd comedies. If genius really is an infinite capacity for taking pains, then Harold Lloyd amply rates the title of genius.” Ou seja, como o refere Ted Park no booklet da edição da Criterion de Safety Last (1923), há nestas afirmações uma dose significativa de condescendência: ao referirem-se elogiosamente a extraordinária dedicação de Lloyd ao trabalho, revelam implicitamente que tal característica não pode nunca rivalizar com o génio de um cómico natural, um Chaplin quiçá. Mas mais agressivo é Walter Kerr em The Silent Clowns ao referir que “Lloyd knew that he didn’t know what he was doing, and detested himself for it. … In due time, Lloyd acquired skills that were superb of their kind. But they were acquired skills. He got no gift from the gods” e Sarris junta-se ao coro afirmando “Not being funny in himself Lloyd had to make evrything and everyone arround him work to his benefit.”
Pois bem, esta recorrência da naturalidade do génio por oposição ao trabalho surge por várias razão, a primeira das quais prende-se com o facto de Lloyd, ao contrário dos seus colegas cómicos do cinema silencioso, ter formação de actor dramático de cinema e não uma origem nos palcos do vaudeville como tinham Keaton e Chaplin. Como defende Matt Barry em The Dilemma of Harold Lloyd, a formação de Lloyd não é no palco, mas no próprio cinema – e que tal facto alterou seminalmente a sua persona fílmica e a sua consciência do plot e do desenvolvimento de personagem em detrimento da narrativa propulsionada à base da gags, como o põe James Agee em Comedy’s Greatest Era, um artigo de 1949 para a revista LIFE, “Lloyd depend more on story and situation than any of the other major comedians”. A sua entrada no cinema faz-se por infiltração nos estúdios da Universal de Edison – sendo o seu primeiro papel em The Old Monk´s Tale (1913) de Thomas Edison – onde entra enganando o guarda ao maquilhar-se de branco como era típico dos actores. Lá, depois de várias participações como extra[4] em filmes de Edison, conhece Roach (outro figurante) e junta-se-lhe – na recém fundada Rolin Film Company em 1914, aproveitando (como tantos outros) uma greve geral na Universal Studios – numa série de pequenos filmes cómicos com um personagem de nome Willie Work dos quais não subsistem cópias, mas que na época não tiveram sequer distribuição. Por discordância com Roach, Lloyd dirige-se para a Keystone de Mark Sennett, integrando uma trupe de vários clowns, “a little fish in a big pond” – onde contracena, como o fará também Keaton, com Roscoe ‘Fatty’ Arbuckle, um dos mais importante cómicos do cinema à época. Regressa a Roach (que agora já tem distribuição da Pathé Exchange) e cria um novo personagem, Lonesome Luke, uma cópia invertida de Chaplin, onde o mendigo ao invés de ter roupas largueironas, tinha-as muito justas – entrando em cerca de 60 filmes de uma ou duas bobines no espaço de dois anos.
O ritmo de produção de Lloyd era (e seria sempre) muito superior a outros palhaços, como Chapin e Keaton, no entanto não havia ainda nada verdadeiramente distintivo do seu personagem cómico, até que surge o the boy with the glasses: “The character that I finally devised could be your nextdoor neighbor. He was just a young man who wore glasses (…) his only distinguishing mark. It’s his attitude towards things, it’s difficulties that he gets into and how he surmounts them, that makes the comedy out of it. Otherwise, he isn’t what you might call a comic character”. Percebe-se então que é da própria natureza da personagem que celebrou Lloyd a sua origem não cómica, fundada na identificação do espectador – Lloyd procurou contraria a ideia de que todo o palhaço silencioso do início do cinema tinha que possuir algum tipo de excentricidade identificadora. Ou seja, o rapaz dos óculos é tão mais cómico quanto mais se identifica o espectador com ele, e o riso é tanto maior quanto maior for o sarilho onde este se envolve, porque o espectador compreende que a situação podia acontecer-lhe e a saída coloca-lo-ia naquela mesma posição que agora assiste, distante e em segurança. Como o põe Loyd: “You not only laughed at him but you laughed with him”.
Este é outro dos motivos que levam à distinção sistemática de Harold como um actor de comédias (e não um cómico), porque o seu personagem não era necessariamente risível de partida, muito pelo contrário, à época – e ainda hoje –, os óculos eram associados a figuras estudiosas e recatadas. Se nos rimos do (e com o) rapaz dos óculos é porque este se revela mais do que aparenta, porque ultrapassa obstáculos que lhe achávamos inultrapassáveis e tudo se faz então da antecipação: como se irá ele desenvencilhar desta? O humor vem tanto mais da acção (o problema) e do desempenho (o desenvencilhar) do que do personagem de partida e, portanto, depende fortemente da capacidade do actor acrescentar verosimilhança ao personagem e fazer-nos esquecer do quão irreal e estapafúrdio é o problema e a solução para ele encontrada. É então um personagem profundamente cinematográfico, algo que vem da sua própria construção. Lloyd criou o rapaz dos óculos a partir de um personagem que viu noutro filme (lá está). Disse ele que “In a dramatic picture earlier, I had seen a parson, a minister that wore glasses. They were horn-rimmed glasses. He was a character that appealed to me. He was kind of go-getter, he belied his appearence. You thought he was meek, mild, a placid type of character, but when he got riled up, he was just the opposite.” Logo aqui percebemos a duplicidade característica do rapaz dos óculos, o facto de ser um padre de aparência pacata (a moral e a paz) que ao mesmo tempo se impõe perante os outros e, quando entusiasmado, se enfurece (altivo e violento).
A origem do rapaz dos óculos deve ser entendida como uma espécie de aceitação irónica daquilo que é a base de qualquer personagem cómica no cinema silencioso, isto porque, onde cada personagem, para se distinguir de todas as outras, tinha que possuir uma característica distintiva (um bigode, um rosto sem emoções, ser gordo e baixo, ser muito magro e alto…), Lloyd concebeu um personagem que, de facto, possuía uma característica visual distintiva mas que podia, em teoria, ser retirada (o que produz em Professor Beware um delicioso gag onde Harold, fora de campo, retira os óculos e os dispões sobre uma estátua que lhe dizem ser-lhe semelhante). Ou seja, a característica identificadora do personagem só o identifica na medida do seu desejo de ser identificada. Esta natureza volátil da marca visual associa-se à própria natureza do rapaz dos óculos que varia, por vezes até em sentidos oposto, de filme para filme – em Why Worry? (1923) é um milionário hipocondríaco, em Hot Water (1924) um marido com uma sogra chata, em Grandma’s Boy (1922) um menino cobarde, em For Heaven’s Sake (1926) um ricaço indiferente aos problemas da sociedade, em Safty Last um jovem à procura do sucesso profissional, em A Sailor Made Man (1921) um milionário que se junta à marinha por engano, em Speedy um rapaz que não consegue ter um emprego fixo, em The Kid Brother procura ser respeitado pela família, em Dr. Jack (1922) é um benemérito voluntário do povoado, em Girl Shy um gago envergonhado e em The Freshman um miúdo que quer ser popular na universidade (e estas são apenas as longas metragens silenciosas… Sarris afirma que “by 1924 a pattern is being established in Lloyd’s career, a pattern moreover of greater variation than is to be found in the career of any other comedian”).
Portanto, tanto é um pobre e esfomeado homem olhando a montra recheada de delícias, como é o mais rico dos ricos (e por vezes as duas coisas; numa das suas mais brilhantes obras, o three reeler Among Those Present (1921) Lloyd explora o mundo de possibilidade cómicas de um jovem remediado e aspirante a grandezas a fazer-se passar por rico e altivo senhor), tanto é completamente indiferente aos outros como se esfola para os ajudar, tanto é sabedor de ciências e medicina como é ignorante e supersticioso. O que une estes personagens todos são pois os referidos óculos e o chapéu de palha que muitas vezes os acompanha e a forma como, defronte de um problema, encontra sempre uma saída vitoriosa.
Há que notar outro aspecto, a segunda característica referida só se cristalizou de facto com a incursão nas longas metragens, isto é, com a duração de quatro ou mais bobines [a partir de 1921 com A Sailor Made Man Lloyd não mais regressaria às few reelers, ao contrário de Chaplin que depois de The Kid (1921) ainda faria as curtas metragens The Idle Class (1921), Nice and Friendly (1922), Pay Day (1922) e The Pilgrim (1923) antes de The Gold Rush (1925)]. Isto porque em filmes curtos como Ask Father (1919) e High and Dizzy (1920) o personagem de Lloyd apesar dos óculos vive ainda demasiado sobre a asa de Chaplin (o “King” como se lhe referia), já que nem sempre conquistava a rapariga (algo que se tornaria imagem de marca) ou porque se comportava erraticamente executando ataques a transeuntes sem qualquer razão (como era hábito de Charlot nos princípios onde toda a bunda passeante era potencial alvo de pontapeio; Chaplin compreenderia que o seu personagem necessitava do tom de figura dramática para melhor empatizar com o público). Assim sendo, a asserção típica de que o rapaz dos óculos é um everyman go-getter, modelo da americanidade, e exemplo para todos os que desejam começar por baixo e subir na vida contra a sua própria pequenez e a imagem que os outros têm de si, peca por parcial. Sim, de facto existem personagem dessas, especialmente as dos filmes mais populares, como Safety Last, The Freshman ou Girl Shy, mas outras são exactamente o oposto, homens ricos e snobs que nada tiveram que trabalhar para chegar onde chegaram – ainda que esses, tipicamente, se convertam a uma moral humilde e se arrependam dos seus “pecados capitalistas” –, como é o caso de For Heaven’s Sake ou Why Worry?. Esta fácil alternância de papeis e o facto de, ao contrário de Chaplin e Keaton, Lloyd ter mudado por duas vezes de personagem cómico (mudança que Chaplin também tentara e nunca conseguira, como revela um dos seus filmes inacabados The Professor) são os motivos mais fortes do dilema Lloyd entre cómico e actor de comédias e portanto “justificam” a desvalorização e a condescendência que lhe é tantas vezes oferecido[5].
Tal como a sua marca característica, também a alternância de papeis funciona para Lloyd como matéria de trabalho e universo de possibilidades narrativas: é a capacidade de constantemente se ocultar, esconder e disfarçar que lhe permite ser bem sucedido defronte os problemas que o inquietam. Então, se o rapaz dos óculos muda radicalmente de natureza e propósito de filme para filme, também é verdade que dentro de cada filme a sua aparência muda, mas também o seu olhar sobre a vida e sobre os outros. Nuns filmes o típico motivo de disfarce é uma perseguição por uma turba de homens violentos que ele provocara (o gag consiste em atrair a atenção do bando e a cada esquina ocultar a sua identidade através de uma roupa diferente ou de um esconderijo para assim poder evitar a desproporção numérica e defrontar apenas o último do magote – a inteligência vence a força e o número é talvez um dos lemas mais recorrentes na acção do rapaz dos óculos). Noutros filmes – especialmente aqueles em que o som já é parte integrante e o argumento passa a existir física e simbolicamente – o personagem sofre arcos que o perturbam: por exemplo, em The Milky Way o rapaz dos óculos começa como simples entregador de leite e vira lutador de boxe altivo ou, inversamente em A Sailor Made Man e For Heaven’s Sake, o milionário arrogante converte-se à bondade e à beneficência. Noutros filmes ainda, a mudança do personagem ocorre através de um “amuleto mágico” que lhe atribui novas capacidades (quer seja o cabo do chapéu de chuva em Grandma’s Boy ou uma antiga placa egípcia em Professor Beware ou ainda o álcool em The Sin of Harold Diddlebock e em High and Dizzy). Confirma-se, pois, a grande dependência do plot nas obras de Harold Lloyd, em dissonância daquilo que era o típico personagem cómico do cinema silencioso – onde uns gags se desenvolviam noutros, ou tudo se construía em torno de um gag central (que é em parte o caso de Safety Last, com a subida ao prédio, e Girl Shy, com a interminável perseguição final – não por acaso os mais populares dos seus filmes, mas nem de perto objecto exemplares do que é o conjunto da sua obra).
Esta característica volátil revela ainda outro aspecto mais profundo no desenvolvimento do personagem naquilo que é a sua forma mais importante, a identificação do público. Citando de novo Sarris: “Only Lloyd understood the audience’s intuitive identification with a character desperate enough to efface himself through concealment. And it is the instinctive desperation in Lloyd’s reaction to danger that gives emotional force to his energy. (…) There is not much depth to the character study, to be sure, but there is a strange intensity to the characterization nonetheless”. Harold mostra-se assim tão humano como todos nós (cobarde e envergonhado), mas, ao mesmo tempo, a partir dessas mesmas origens comuns, revela-se[6] corajoso e inteligente ultrapassando essas barreiras que nós, os espectadores, achamos intransponíveis – e nesse confronto entre aquilo que nós cremos ser definidor de quem somos (e que reencontramos reflectido no rapaz dos óculos) e a forma como essa definição é rasurada com aparente facilidade cria-se o riso e semeia-se a dúvida no espectador sobre as suas reais capacidades[7]. A latência no rapaz dos óculos é gérmen da utópica ascensão social para todos que a sociedade norte- americana sempre prometeu – e, por isso mesmo, fez de Lloyd o mais popular dos palhaços do período silencioso, em especial durante os anos 1920[8]. Não é por acaso que Lloyd é reconhecido como um dos primeiros artistas no mundo do cinema a recorrer a sessões privadas com amostras genéricas de público (aquilo a que se costuma chamar preview screenings) para a melhor antecipar a reacção a certos gags, corrigindo uns e reescrevendo outros – num processo de vai e vem entre a sala escura e a escrita, rodagem e moviola – tudo a bem da satisfação do público em detrimento do criador omnisciente e omnipotente.
Talvez tenha agora chegado o momento de me demorar um pouco sobre aquilo que é o género intrínseco ao cinema de Lloyd, o slpastick, e de que forma ele se manifesta nos seus filmes – em especial os sonoros, ao contrário do que seria de esperar. Chegou o momento, porque me parece que não há mais como evitar a questão da graça em Lloyd (por oposição aos demais). Há um consenso sobre o facto de Harold ser o mais engraçado (o mais divertido, leia-se o mais funny) dos cómicos silenciosos. Note-se as três seguintes afirmações.
If great comedy must involve something beyond laughter, Lloyd was not a great comedian. If plain laughter is any criterion – and it is a healthy counterbalance to the other – few people have equaled him, and nobody has ever beaten him. – James Agee in Comedy’s Greatest Era
Harold Lloyd has neither Keaton’s sublime serenity nor Chaplin’s passionate poetry, but he was often funnier than either. – Andrew Sarris in Harold Lloyd: A Rediscovery
We are talking about gags! A gag isn’t supposed to be touching. (…) You’ve got to separate jokes from beauty and all that. Chaplin had to much beauty . – Orson Welles [quando Henry Jaglom afirma que os gags de Lloyd não eram tão tocantes como os de Chaplin] in My Lunches with Orson, conversations between Henry Jaglom and Orson Welles
O que se nota é que a graça funciona como prémio de consolação para Lloyd: não és poético, nem brilhante, mas ao menos tens graça. Mas que medida se deve escolher quando se avalia uma comédia? Estou em crer que a graça e o divertimento devem ser, de todas, as primeiras e mais importantes. Faz por isso sentido analisar a forma como Lloyd trabalhou o slapstick e de que forma a diversão passou a ser desvalorizada em detrimento do pathos ou do virtuosismo técnico nas comédias.
A origem da palavra slapstick prende-se com o circo e os artefactos dos palhaços – “the double paddles formerly used by circus clowns to beat each other. The loud crack of the two paddles blades as they crashed together could always be depended upon to produce the laughter and applause” – sendo por isso um género que encontra de base uma associação próxima à violência: não existe slapstick sem slap (chapada, palmada) e por isso não existe, no género, humor sem a antecipação de perigo.
Por outro lado, segundo a afirmação de Willson Disher, em comédia só há seis tipos de piada: a queda, a pancada, a surpresa, a maldade, o mimetismo e a estupidez. Desses só os dois primeiros são essenciais ao slapstick. Percebe-se então que é a violência o elemento definidor de quase todo o humor do período silencioso – o humor físico é pois aquele que se faz no risco do corpo, na possibilidade do dano, na iminência do ferimento. Parece-me que há, portanto, pelo menos três aspecto a ter em consideração quando se considera a violência no cinema cómico (silencioso e no outro): (1) a questão do corpo, (2) a ideia de realismo e de verosimilhança e (3) o problema da motivação (o porquê da violência, a sua origem e o seu propósito).
Mantendo a obra de Lloyd no firmamento, sobre o primeiro aspecto há que referir (mais uma vez) a forma como todo o cinema cómico existe sempre na relação de identificação com o espectador, assim a comédia física limita-se a frisar de forma mais evidente aquilo que é próprio do cinema, a produção de figuras que confirmam a visão (por vezes utópica) de nós mesmos, e, como refere Jonathan Rosenbaum, a forma como reagimos a figuras cómicas onde o corpo é instrumento fundamental (quer pela sua presença, quer pela recusa do risco físico) tem tanto que ver com a forma como lidamos com o nosso próprio corpo – não só por recearmos as situações de perigo mas talvez mais ainda por recearmos as situações de humilhação social (outra forma de violência muito recorrente na obra de Harold Lloyd) onde o corpo é veículo da vergonha: várias são as vezes em que Harold perde a roupa em público expondo-se (e ao seu corpo) para sua aflição e nosso gáudio – como diz Mel Brooks, tragedy is when I cut my finger, comedy is when you fall into an open sewer and die.
Ainda relacionado com a questão do corpo, mas transitando agora para a segunda, da violência, há no cinema silencioso uma distância ao real que se prende pelo facto de na sala só se tentar (ou conseguir) reproduzir o visual e não o sonoro – ainda que o cinema silencioso esteja carregado de referências sonoras, em particular Lloyd, onde os gags “sonoros” são vários. Assim, uma pancada na cabeça à qual não está associado o som de um crânio a quebrar-se ou de ossos a partir tem um potencial cómico que se funda no facto de o espectador não ter presente as consequências de tal gesto – acrescentando-se a isso o estilo de pantomina que caracterizou o cinema silencioso em especial nos momentos de maior violência.
O caso de Lloyd é particularmente interessante nesta questão. De todos os palhaços silenciosos Lloyd é certamente aquele que melhor se agarrou ao seu tempo (muitas e as mais populares histórias se passam na actualidade lidando muitas vezes com temas populares e com invenções tecnológicas de então – o Ford modelo T, telefone, as passadeiras eléctricas – certamente uma resposta às escadas rolantes de Chaplin) acrescentando um lado naturalista e quase documental aos seus filmes – desta opinião são vários críticos, por exemplo Agee afirma que o trabalho de Lloyd “was most nearly realistic”, Roger Ebert, referindo-se a Safety Last, explica que “in a way that later films could never duplicate, silent films, especially comedies, have a documentary level beneath their fictions” e Dave Kehr brilhantemente afirma que “The other great silent comics defined their own worlds; Lloyd lives dangerously in ours”.
Lloyd existiu quase sempre em tensão entre o lado realista e o documental dos seus filmes e a propensão onírica do cinema silencioso. Dessa tensão originaram-se certos gags onde o riso é mais uma reacção de escape do que uma aprovação de comicidade, um riso fino a assustado (como aquele que por vezes se liberta num filme de terror) – um misto entre riso e suspense, o nervoso miudinho que só encontra no riso um alívio momentâneo. A graça de Harold Lloyd é pois uma que se constrói no exercício da verosimilhança máxima, da credibilidade e do naturalismo, para que, nesse ambiente, as mais extraordinárias proezas nos pareçam descomunais exercícios de força e precisão. O personagem dos óculos de Harold Lloyd não é só um de nós, ele é o palhaço que nós gostaríamos de ser, mais, ele é o palhaço que nós somos e ainda não descobrimos.
No cinema actual é difícil encontrar momentos onde esse riso aflitivo esteja presente (pelo menos no caso do perigo físico, no perigo de humilhação social isso é mais frequente), algo que motivou um artigo de Max Winter intitulado Why a Modern Harold Lloyd is Unthinkable. Em resposta a este artigo (e à questão deixada em aberto por Winter) Richard Brody escreveu que uma versão moderna de Lloyd é impensável porque a “physical comedy depends on the proximity and possibility of death, which no longer seems acceptable to viewers who are completely aware of the prevalence of stunt doubles and digital effects, and who are repelled by the idea that a performer would actually face death for what is, after all, only a movie. In other words, physical comedy—the kind that made silent comedies famous—has been moralized out of existence.” Hoje em dia, quando o realismo dos efeitos digitais permite qualquer tipo de evento (do mais simples aos mais estapafúrdio) o espectador tem consciência da presença desse efeito e por isso desconta na sua percepção a noção de perigo. (Excepção feita aos filmes que se constroem sobre a ideia de realismo através dos mecanismos do documentário, nesses casos (e penso naturalmente em comédias como Jack Ass ou os filmes confrontacionais de Sasha Baron Cohen), o espectador é levado a crer pelo cliché verosimilhante do dispositivo.) No cinema silencioso o espectador acredita (pela distância temporal e pela diferença de meios tecnológicos) no perigo efectivo do protagonista quando está prestes a cair de uma fachada de um prédio – ainda que em muitos casos o perigo para o actor fosse efectivo.
No que respeita, por fim, à problemática da motivação da violência começo por citar Slavoj Zizek a propósito de Taxi Driver (1976), “violence is never abstract violence, it is a sort of intervention in the real to cover up a certain impotence concerning what we may call cognitive mapping, you lack a clear picture of what is going on”. Isto para refutar desde já a afirmação recorrente de que no cinema slapstick a violência funciona apenas como facilitismo para a comédia, não contendo outra origem que não o escapismo e a preguiça criativa. Mais importante, estou em crer que a violência é elemento definidor do trabalho de Lloyd, aquele que é tipicamente o mais socialmente integrado, exemplar e moral dos palhaços silenciosos – exactamente por isso…
A violência para Harold é pois uma característica do seu temperamento restrito, como se o seu aspecto de jovem moço inocente e bondoso ou de alto dignitário enfadado fossem apenas uma imposição social que castram a energia destrutiva que a aparente calma esconde e por outro excitam a raiva por uma definitiva revelação. Assim, ao contrário do lema de Sennett “Reduce conventions, dogma, stuffed shirts, and autorithy to nonsense, an then blossomed into pandemonium”, Harold através do seu rapaz dos óculos propõe uma estratégia diferente: serve as convenções, os dogmas, veste a roupa que te ordenam, obedece à autoridade e assim explodirás e farás explodir em pandemónio. Ou seja, Harold não pretende destruir o sistema pela sua contradição anárquica, ele obedece-lhe fervorosamente eou acaba destruído por ele ou destrói o sistema pela consumação extrema das suas regras – ou, noutros casos, sai simplesmente vitorioso pela acção da sorte ou do acaso, leia-se, é indiferente à autoridade e, portanto, como no argumento teológico de Pascal, mais vale obedecer pelo sim pelo não.
Os casos mais violentos do cinema de Lloyd são, talvez não totalmente inesperado, os seus filmes sonoros, Welcome Danger (1929) e The Cat’s Paw (1934). Ambos lidam com um rapaz dos óculos com um incomum e inesperado poder: no primeiro é responsável de investigação policial, perito em impressões digitais, e no segundo é eleito Mayor da cidade ficcional de Stockport. É esse poder que lhe é dado por intrincadas voltas da trama que revela – a palavra chave em Lloyd – a verdadeira vontade do sossegado rapaz dos óculos.
Há que perceber que Welcome Danger é o primeiro filme sonoro de Lloyd e que teve de ser em parte refilmado (alterando substancialmente a história original) para poder acolher essa nova invenção que era o som – o público desejava ouvir as vozes das estrelas silenciosas [basta lembrar Singin’ in the Rain (1952)] e a passagem para o som fez do filme um dos maiores êxitos de Harold Lloyd. A juntar a essa vontade do público, outra se acresceu, a moda dos filmes de mafiosos e ainda o fascínio ocidental (e próprio da década) por tudo o que era oriental. Numa expressão curta, Welcome Danger e The Cat’s Paw são umas chinoiserie gangster. Andrew Sarris considera o primeiro um dos piores do cómico – “Lloyd might have been better advised to shelve Welcome Danger” –, mas apercebe-se do peso da violência neste primeiro filme sonoro. Diz ele: “there is more head-cracking violence in Lloyd’s first talkie than in all his silent movies put together”. Se o realismo do som acrescenta à violência do slapstick uma dimensão diferente (e porventura chocante) não é justificativo suficiente para um incremento tão significativo (aliás, devido a muitas das salas de cinema ainda não estarem equipadas com os sistemas de som Welcome Danger existe também numa versão silenciosa). Parece-me que a melhor explicação para mudança é mesmo o facto de, devido ao som, Lloyd ter começado a trabalhar com um argumento propriamente escrito com diálogos fixos. Welcome Danger foi o primeiro filme baseado num argumento e The Cat’s Paw o segundo (desta feita, é o primeiro baseado numa história publicada que não fora escrita propositadamente para Lloyd) já que os filmes que surgiram entre um e outro [Feet First (1930) e Movie Crazy] seguem ainda em parte o método dos seus filmes silenciosos. É curiosos notar que, se de facto a história não fora escrita propositadamente para o rapaz dos óculos, também é verdade que depois de ler o primeiro capítulo publicado por Clarence Budington Kelland no The Saturday Evening Post, Lloyd tenha comprado os direitos da restante novela ainda por escrever com o intuito de a adaptar, sendo o personagem modelado em parte à sua imagem [e se o nome de Kelland lhe ressoa de algum modo é porque uma história sua já havia sido adaptada para um filme de Keaton, Speak Easily (1932), sendo ele seria também o autor da história que Capra adaptaria no famoso Mr. Deeds Goes to Town (1936) dois anos depois].
A questão prende-se então em perceber por que razão são os filmes mais violentos quanto mais escritos são. Certamente que o ambiente do filme de gangsters na Chinatown ajudou neste caso, no entanto há que ter atenção a The Cat’s Paw e ao facto de que Lloyd ter feito o filme e publicitado o mesmo como sendo “free from gags” – o cartaz promocional avisava “tudo diferente com excepção disto” onde o “disto” eram os óculos característicos de Harold. No entanto, como salientou M.H. Abrams na sua crítica no The New York Times em Agosto de 1934, “there is no denying that an audience at the first showing yesterday roared with laughter at several of the ingenious twists and turns of the fast-paced narrative.” Harold Lloyd quis seguir uma via mais pesada com a chegada do som, contando histórias mais negras e mais violentas de um país que acabara de entrar em recessão após o crash da bolsa e que como tal se interessava menos pelas palhaçadas dos cómicos silenciosos, só que a sua “metapersona fílmica” não se adaptava bem ao meio das caves húmidas e das pistolas em riste. Estes dois filmes são objectos estranhos por existir neles um choque entre a intenção de fazer diferente e a necessidade de capitalizar sobre uma das imagens mais populares da década anterior. Década em que a prosperidade reinava e o optimismo típico de Lloyd encontrava espelho no público que enchia as salas (ainda que Harold tenha sido de todos os palhaços aquele que melhor se adaptou ao sonoro por ser também ele o mais realista e aquele que trabalhava sobre a própria ideia de adaptação).
Mas afirmei que a violência era elemento fundamental na obra de Lloyd, portanto, os dois filmes chinoiserie gangster não são mais que a afirmação exacerbada dessa natureza. Talvez um dos casos mais evidentes disto seja a forma como vários dos gags de Lloyd são construídos em torno de animais (e Lloyd em torno deles) – como se a relação de Harold com os animais fosse mais justa do que entre ele e outros humanos. Isto é, parece-me que muita da violência que se encontra nos filmes de Harold é aquela que associamos aos animais, um perigo latente que se manifesta quando provocado (e que pode ser letal), mas que na maioria das vezes é calmo e sereno. Por exemplo, em Among Those Present encontramos cães, gatos, cavalos, porcos, gansos, bodes, vacas, guaxinins, pombos, leões, ursos, carpas, galinhas, raposas e lebres (e noutros encontramos ainda, além de algumas recorrências, macacos e focas com desempenhos importantes). Nesse filme Harold é convidado a fazer-se passar por uma figura de grande importância apesar de ser um mero servente de hotel, viaja para a casa de campo de uma família rica que organiza uma festa, enganando sem esforço os presentes. Os presentes humanos, já que os animais residentes (nomeadamente o cavalo Dynamite) não lhe reconhecem qualquer estatuto real e tratam-no como um intruso. O jogo farsante funciona com o humanos mas não subsiste aos instintos animais que o reconhecem como um impostor. Dir-se-ia que é preciso um impostor para reconhecer outro, neste caso digo que é preciso um animal para reconhecer o seu semelhante. Ou seja, para os animais de Among Those Present Harold não é tanto um impostor como é um adversário, daí os sistemáticos ataques do cão, do bode, do cavalo e também dos gansos; eles sentem-se ameaçados na sua incontestada posição de senhores da quinta, e Harold é o mais forte dos concorrentes (sem o saber). Eles reconhecem a animalidade do rapaz dos óculos naquilo que lhe é mais característico: a resposta violenta (que não tem que ser necessariamente física).
Essa resposta violenta não é necessariamente uma dirigida ao exterior, por exemplo, em Haunted Spooks (1920) e em Never Weaken (1920) Harold decide matar-se por não ver o seu amor correspondido, entrando numa série de tentativas falhadas para tirar a própria vida[9]. Mas talvez os casos mais interessantes sejam aqueles em que a resposta violenta origina numa reacção a um problema moral: a máfia, o crime…
Violência como instrumento que visa combater mais violência, o método da terra queimada. Esses casos encontram-se no referido par chino-mafioso. A expressão the cat’s paw corresponde à pata de gato da máfia, isto é, à figura amável e aparentemente reformista colocada pela máfia na posição de Mayor que funciona como boneco articulado sob a mão do patrão do crime. O jovem missionário vindo da China e sabedor dos ensinamentos de Lin Po toma o cargo por ser a criatura aparentemente mais naife que a camorra consegue encontrar, só que cedo o imberbe rapaz dos óculos decide por bem cumprir aquilo que prometeu e iniciar uma real limpeza do crime organizado. Uma vez que os métodos ocidentais não funcionam (e Harold acaba incriminado por um delito que não cometeu), decide-se pelo método oriental: ou confessam ou morrem. Todos os criminosos são colocados numa cave e um a um são levados a Harold que os decapita com uma enorme catana, até que os sobrantes aceitem confessar (afinal tudo não passava de um número de magia chinês). O tom fascista que aqui se anuncia manifesta-se de várias formas: a agregação de alegados criminosos numa câmara de execução, a tortura como forma de obter confissões, o recurso a uma autoridade filosófica como justificativo da maldade, o extermínio tentado de uma faixa da população que alegadamente é a causa de todos os males da cidade… Sim, é fascista (pelo menos no aroma), mas também o eram outros filmes do pós crash, por exemplo, This Day and Age (1933) de Cecil B. DeMille, onde um grupo de adolescentes (também eleitos para cargos públicos, procurador do estadual, juiz e chefe da polícia e também incapazes de alcançar os seus intentos por meios legais) entra numa fúria vigilante contra o gang da sua cidade. Mas se não era incomum o tom na época, era incomum o protagonismo de tal filme por uma figura querida e cómica. E esta é a chave que faz de Welcome Danger e The Cat’s Paw um caso tão fascinante e assustador: através do seu trabalho de identificação com púbico (mesmo num filme que supostamente não teria gags e portanto não seria para rir) o público revê-se e acarinha um personagem que acaba por se revelar monstruoso. Ou seja, o público identifica-se com o monstro, apercebendo-se portanto da sua monstruosidade latente. Quando Harold é eleito Mayor, a menina dos seus olhos explica-lhe: “Oh, well its all a circus anyway. And every circus must have its clown.” Esta aparente inocência do palhaço é aquilo que transtorna quando se olha para o rapaz dos óculos de Lloyd. Ele é como nós mas faz aquilo que nos horroriza – para o bem e para o mal.
Mas há ainda outra forma de violência latente nos filmes de Lloyd, uma violência mais profunda por ser doutrinariamente incerta: o rapaz dos óculos é bem sucedido por perseverança ou sorte? Há nos seus filmes ironia ou confiança na ascensão social? Trata-se de uma crítica ou de uma apologia do capitalismo? Convenhamos que raramente Lloyd é bem sucedido sem o apoio marcante da fortuna: em Movie Crazy é convidado por um estúdio de Hollywood por ter trocado a sua fotografia de rosto com a de um típico gala; em The Milky Way é projectado para as manchetes dos jornais por ter derrubado o campeão mundial de pugilismo (ainda que venhamos a perceber que nada fez para que o desgraçado caísse inconsciente no chão); em Safety Last o número da subida do edifício é um golpe furado que serviria para enganar o chefe a promovê-lo; em The Freshman ele é integrado na equipa de futebol sem saber que na verdade é apenas o rapaz das águas (e só acaba por entrar na partida por não haver mais jogadores suplentes); em Why Worry toda a sua coragem funda-se na sua total alienação aos eventos que ocorrem, fazendo passar por corajoso o que não é mais que simples inconsciência (algo que se encontra uma e outra vez, como é o caso, já referido, de Grandma’s Boy e Professor Beware onde a coragem tem origem num falso amuleto que o leva a crer-se invencível). Assim, como pode ler-se aqui apologia, confiança e perseverança se o sucesso do rapaz dos óculos é quase sempre um acaso? Em boa verdade a retórica capitalista não descura o acaso da ascensão. Muito pelo contrário, esse acaso é a base utópica onde o capitalismo se cimenta. A saber, o sucesso no mundo capitalista é tanto mais a forma como cada um é capaz de apanhar aquela oportunidade, como consegue agarrar a ponta da unha que lhe deitam e a partir dela, a mão, o braço e tudo mais. Todo o grande empresário é aquele que um dia soube aproveitar a sorte, a coincidência, o acaso. Assim, o rapaz dos óculos não é tanto um go-getter como é um go-grabber, já que, mais que ir e conseguir, ele passa e, por sorte, apanha. Não é pois por acidente que o conselho que o seu pai lhe dá em The Milky Way se resume na expressão stick to i! (e quem sabe you’ll get stuck…)
Consciente desta natureza ambivalente da ideologia que os filmes de Lloyd transparecem, Sturges convidou o palhaço já não tão silencioso para The Sin of Harold Diddlebock, que começa desde logo com o final de The Freshman repetindo a sua última bobine (agora sonorizada, sem os intertítulos e com alguns ‘insertos’ que servem de mote ao que sucederia depois da vitória da equipa de Lloyd). Mal termina o filme de 1925, Sturges leva-nos para o balneário onde a equipa celebra a vitória que o rapaz dos óculos lhe havia dado (duas décadas depois Lloyd parece não ter envelhecido um ano que seja), à qual se junta um rico empresário que vendo a destreza, coragem e firmeza do rapaz lhe oferece um posto de trabalho na sua empresa. A oportunidade que se tem que agarrar, o acaso maravilho, a fortuna que todos aguardamos laboriosamente. Ao comparecer na empresa do dito ricaço este mal se recorda do facto e oferece-lhe a possibilidade de fazer aquilo que os grandes homens fazem: começar de baixo para que a sua ascensão seja mais gloriosa, colocando-o numa posição de contabilista. Passamos para a actualidade (de 1925, ano de The Freshman, para 1947, ano de The Sin) e vinte anos depois o rapaz dos óculos permanece no mesmo posto de contabilista, já de meia idade, deprimido, sendo pouco depois despedido para que novas oportunidades possam surgir na sua vida. Na sua acidez Struges torna explícito aquilo que Lloyd sempre intuíra e que os seus filmes sempre deixaram subentendido: que a crença na ascensão social, a apologia do capitalismo e a ode à fortuna fortuita são tão bacocas como os óculos do rapaz que nunca tiveram lentes; funcionam por isso como simples armação de um mundo onde o rapaz vive e onde o rapaz tenta ser feliz.
Mas sobre The Sin ainda não estamos terminados. Depois de ser despedido o rapaz dos óculos acaba num bar e embebeda-se ao ponto da amnésia, fazendo numa noite tudo aquilo que a boa moral, a segurança no trabalho, as aparências e tudo o mais não lhe permitiram, incluindo a compra de um circo (desfazendo todo o dinheiro da sua indemnização)! De novo o falso amuleto (desta vez o álcool) leva-o a entrar no mundo do capital, a tornar-se empresário e passará de empregado a empregador. No entanto, falta financiamento para o circo. Numa estrondosa manobra de marketing o agora ‘senhor’ dos óculos visita cada um dos bancos de Wall Street sucessivamente com o seu leão domesticado, aterrorizando tudo e todos, especialmente os banqueiros (onde se inclui o seu antigo patrão). Ao transformar-se na maior atracção do dia, por influência dos meios de comunicação, torna o seu circo decrépito no mais badalado divertimento da cidade, conseguindo uma oferta exorbitante para o seu primeiro (e ultimo?) investimento. A paródia ao sistema financeiro mescla-se com a homenagem de Sturges a Lloyd com a “re-encenação” de alguns dos seus melhores gags. O crítico Neil Young surpreendeu-se como podia um dos melhores argumentistas de Hollywood ter feito um filme onde “seems not to be using any kind of script at all”, mas não era esse o método do cinema silencioso e em particular de Lloyd? The Sin of Harold Diddlebock é um filme tanto de Sturges como de Lloyd e por isso mesmo revela de Lloyd uma ironia fina que só lhe adivinhávamos com esforço.
Tudo isto que venho apresentando como definidor daquilo que é a obra de Harold Lloyd, o seu lado documental, a relação estranha com a violência, a sua leitura política entre a apologia e a crítica ao sistema capitalista, a imagem da americanidade e da ascensão social, o constante receio da humilhação pública, a farsa e a ocultação de identidades mutantes, a dependência do argumento e a consequente progressão pioneira do formato longo na comédia, a proximidade ao seu tempo e às tecnologias, o cinema como espaço de desenvolvimento profissional… tudo isso funciona de certo modo como como confirmação da posição que crítica e academia vem tendo para com Lloyd. O episódio da série documental da PBS dedicada aos great masters americanos sobre a vida e obra de Lloyd chamava-se The Third Genius, ou seja, o palhaço silencioso que se sucede a Charlie Chaplin (em primeiro lugar) e Buster Keaton (em segundo). Pois bem, esta posição terceira não é sequer consensual, outros apreciam mais Laurel e Hardy (pela sua força icónica), Harry Langdon (o bebé da nação) ou, claro, Roscoe “Fatty” Arbuckle (o pai da paródia e figura dramática do puritanismo do início do século).
O primeiro dos motivos é pois esse da identificação, se os óculos marcam a figura do rapaz, esse apetrecho não se manifesta num tom característico, num poética própria e facilmente reconhecível nem numa visão do mundo simples e etiquetável. Por outro lado, existe um conjunto significativo dos seus filmes que encaram a ascensão social, o sucesso profissional (e amoroso na sua ligação íntima com o profissional) e a aparência como matéria de trabalho. A isto junta-se o facto de Harold Lloyd, ao contrário da maioria dos seus colegas, ter sabido gerir os seus sucessos tornando-se, a certo momento, um dos dez enternainers mais ricos do mundo, com uma fortuna que se manifestava em enormes propriedades, mansões e passatempos de luxo – desde a criação de cães de raça (Great Danes), colecção de carros, várias maratonas nocturnas de filmes por semana, fotografia (em particular a fotografia estereoscópica[10] que, por coincidência já se anunciava numa cena de The Kid Brother) e sistemas de som de alta fidelidade. Assim, a fortuna, o seu posicionamento político conservador (um fervoroso republicano) e os seus filmes, onde se pode ler a apologia do capitalismo, fazem dele um ódio fácil para aquilo que os seus amigos e dedicados estudiosos chamam de críticos highbrow. Richard Griffith, na nota introdutória da autobiografia de Lloyd An American Comedy, escreveu: “It is the optimism which chiefly sticks in the highbrow craw and accounts for the continued fundamental lack of interest in him and the continued rating of him below Chaplin, Keaton and even Langdon.” Sim, Lloyd não era pessimista, melancólico, poético, estóico, trágico ou absurdo, não o era com certeza. Era sim espirituoso, divertido, optimista, sortudo e empenhado. Mas a leitura da comédia sempre se fez através da força moral do drama: a boa comédia é aquela que consegue ser trágica e melancólica (como o era Chaplin), ou absurda e estóica (como era a de Keaton), ou patética e triste (como era a de Langdon), ou profundamente amoral e paródica (como era a de Arbuckle). Não seria difícil ouvir dizer que “se faz rir é bastante bom, mas a verdadeira arte é a do drama, da ironia cínica, da tragédia”; logo, a verdadeira comédia é aquela que não se esquece da sua posição e a confirma pela bajulação ao drama – não é incomum ouvir e ler frases como “É possível ver The Kid sem dar gargalhadas” como o diz Mark Cousins em Biografia do Filme sem que com isso não nos questionemos sobre a qualidade cómica do filme de Chaplin.
Lloyd é, pois, um caso paradigmático onde se conjugam todos os pequenos ódios da crítica e do historicismo reavaliador: era demasiado popular no seu tempo para o seu bem, ganhou demasiado dinheiro, acreditava demasiado naquilo que era para si a América e a vida profissional e achava tontamente que o mais importante eram os gags e não a emoção (é quase confrangedor ouvir a sua neta tentar dourar a pílula vendendo-o como o pai da comédia romântica – o verdadeiro género popular dos nossos tempos[11]).
A tudo isto certamente não terá ajudado o facto de a sua obra ter estado quase oculta da generalidade do público durante mais de meio século. Apesar de ter guardado quase todos os seus filmes em condições apropriadas ao longo dos anos, Lloyd raramente os exibiu em público. Houve uma reposição de The Freshman em 1953 e dois filmes de compilação montados pelo próprio nos anos 1960, World of Comedy (1962) e Funny Side of Life (1963), onde se apresentava alguns dos “melhores momentos” de Lloyd. Porém, como já referi, a sua dependência do plot fazia da excisão de gags individuais um decréscimo da sua graça e pujança cómica. Nos anos 1970 a Time-Life exibiu em programas televisivos de meia hora versões cortadas e tristemente dialogadas de alguns dos seus filmes. É no entanto nessa década que alguma atenção lhe é dada, o livro de Kerr que aqui citei, a biografia de Richard Schickel (Harold Lloyd, The Shape of Laughter) e outra de Adam Reilly (Harold Lloyd, King of Daredevil Comedy). Só nos anos 1990 foram editadas cinco das suas longas metragens para consumo doméstico em VHS – ainda que por um período curto –, o que muito difere de Chaplin e Keaton cujos filmes seminais rapidamente caíram no domínio público sendo o acesso aos mesmos muito mais fácil e democrático[12].
Independentemente do acesso público à obra de Lloyd, a influência da mesma é marcante noutros cómicos: no período silencioso Keaton é aquele cujo trabalho mais referência estabelece (em ambos os sentido há que notar), mas as comédias silenciosas de Ozu também evidenciam grande amor e reverência pela obra de Lloyd – especialmente os filmes de humor universitário –, e mais tarde Jerry Lewis é certamente um discípulo tresmalhado que o próprio Lloyd encarava como um belo descendente do género slapstick: ”he has a lot of talent”. Além da influência cómica sobre outros palhaços, há também no trabalho de Lloyd uma evidente força icónica em alguns dos seus filmes, nomeadamente o eternamente repetido e citado momento do relógio em Safety Last. Sobre este aspecto, que se pode denominar de “legado de Harold Lloyd”, quero demorar-me então um pouco mais, olhando em particular para os seus dois títulos mais conhecidos: The Freshman e naturalmente Safety Last.
Começando pelo primeiro, como explica Suzanne Lloyd, o género “universitário“ – se é que lhe podemos intitular assim – não existia propriamente até ao filme de Lloyd: “There were three movies made with football in them. After The Freshman, they made eight in two years.” Além do referido exercício de homenagem por parte de Sturges, a popularidade do filme (inesperada à época… hoje comédias e dramas com temáticas desportivas são sucessos quase garantidos) inspirou por exemplo Keaton a fazer College (1927) cuja sinopse é em tudo semelhante. O paródico Roscoe “Fatty” Arbuckle realiza o two reelers My Stars (1926) – já depois dos escândalos que o afastaram da fronte da câmara para a retaguarda com um pseudónimo – onde uma série de estrelas masculinas da Hollywood dos anos 1920 são idolatradas por uma senhora; para conquistar a sua atenção o pretendente faz-se passar por cada uma delas e sucessivamente vê-se surpreendido por uma renovada admiração pela estrela seguinte. É no entanto o rapaz dos óculos de The Freshman que acaba por conquistar a fixação imagética da moça e abolir a sua relação fetichista com a imagem projectada sobre a carne e o amor do seu pretendente (algo que não é improvável já que Lloyd é o “everyman go-getter” e, naturalmente, de todos os populares protagonistas masculinos da época, é o que mais próximo está da natureza do herói mimético).
Referia há pouco Lewis e Ozu. O primeiro, além de ser dos últimos palhaços físicos (junto com os filmes do duo Peter Sellers-Blake Edwards, ainda que a paixão de Edwards fosse muito maior por Laurel e Hardy), em That’s My Boy (1951) Lewis e Dean Martin reproduzem com grande exactidão a trama do filme de Lloyd: de novo um rapaz enfesado que não tem grande jeito para o desporto que acaba por, sozinho, dar a vitória à sua equipa. Note-se, contudo, que aqui o rapaz é forçado, por imposição parental – Lewis é filho de dois grandes desportistas – ao desporto e Harold é movido apenas pela sua vontade (mas sempre ajudado por uma miríade de coincidências abonatórias). Quanto a Ozu creio que David Bordwell refere em Ozu and the poetics of cinema os pontos fortes desta ligação: “The Freshman became the prototype of Ozu’s college comedies, and its film-poster-within-a-film probably inspired the cinephiliac Ozu to try such a device in many later movies. A poster for Speedy (Lloyd’s nickname in The Freshman) adorns one wall in Daigaku wa deta keredo (I Graduated, But…, 1929)”, ao que acrescenta depois que “Ozu fancied Lloyd’s zanier gags: he borrowed the glad-handing jig from The Freshman for use not only in the college films but also in his gangster movies, thus creating unexpectedly sprightly thugs. More pervasively, both filmmakers were drawn to situations of acute public humiliation. A 1920s Lloyd film alternates between the ‘thrill comedy’ for which he is justly famous and prolonged scenes of painful embarrassment (…) The Freshman presents a relentless succession of scenes of public ridicule, climaxing in a school party at which Harold’s new suit comes to pieces at the seams. Similar scenes occur throughout Ozu’s early work.”
Mantendo a atenção sobre a influência de Lloyd no cinema nipónico, mas agora olhando para Safety Last, em Konyaku sanbagarasu (The Trio’s Engagement, 1937) a loja de atoalhados onde Harold trabalha é reproduzida (loja que podia ser a sapataria em Feet First) assim como alguns dos diálogos são citações do filme de 1923. Mas de todas as cenas, as sequências da loja são aquelas que menos vezes têm sido citadas, naturalmente a sequência do relógio tem um poder magnético que atrai o olho e a câmara, como o põe belíssimamente Agee: “Each new floor is like a new stanza in a poem”. É a força poética e imagética desse longuíssimo gag que não mais deixou de se fazer sentir na cultura popular (mesmo que a maioria das vezes não se reconheça a situação que o originou).
À época Langdon aproveitou-se do gag numa quase-queda em Tramp, Tramp, Tramp (1926), o próprio Chaplin foi para as alturas em The Circus e Laurel e Hardy arriscaram as vertigens no two reeler Liberty (1929). Desde então as reproduções multiplicam-se: o genérico de abertura de James Bond On Her Majesty’s Secret Service (1969) ao anúncio publicitário para a maquilhagem da CoverGirl Outlast com Sofia Vergara, passando por Back to the Future (1985), The Simpsons (o episódio The Wife Aquatic de 2007), Project A (1983) de Jackie Chan – o palhaço físico que melhor aprendeu com os silenciosos em tempos recentes, vários dos seus filmes citam directa ou indirectamente Keaton e Chaplin –, a homenagem de Stanley Kramer ao slapstick, It’s a Mad Mad Mad Mad World (1963) ou ainda Hugo (2011), a ode nostálgica de Scorsese ao cinema silencioso (em espectacular 3D digital), e a lista continuaria…
A explicação para o fascínio por este momento charneira naquilo que é a obra de Lloyd (e que funciona como porta de entrada para quase todos) prende-se com aquilo que vim aqui apontando: o riso nervoso, o receio e a pantomina do personagem, o problema e a resolução estapafúrdia, a identificação e o risco. Tudo isto contribuiu para a força cómica do momento. Além disso, há a já referida leitura de Sarris (e sucedâneos) da subida como símbolo da ascensão social e o consequente medo de cair (que é tanto físico como simbólico). A acrescentar a isso há aquilo a que se chama o “ordenhar” de um gag: inventá-lo e superá-lo consistentemente, isto é, se subimos um patamar, outro há acima, se num nos lançam uma rede ou nos colocam um balde na cabeça, no seguinte virá um rato ou um pombo que nos perturbará a caminhada, se a janela não se abre então o relógio descairá, uma corda solta surgirá matreira e depois dela uma pancada incapacitante à beira do precipício. Tudo isto faz do final de Safety Last uma bíblia cómica de onde se pode extrair tudo aquilo que há para saber da comédia física.
Note-se que este número não está apenas presente em Safety Last. Pelo contrário, Lloyd foi apurando essa sequência, tendo já um gag semelhante em High and Dizzy onde se aventura pelo beiral de um prédio, outro em Ask Father onde sobe um fachada, outro ainda em Look Out Below? (1919) e ainda em Never Weaken onde esvoaça pelos ares pendurado num guincho de uma grua. Um número muito semelhante ao famoso momento do relógio encontra-se repetindo em Feet First (desta vez numa plataforma para a lavagem de janelas) e também The Sin of Harold Diddlebock (de novo o beiral, desta feita acompanhado de um leão doméstico)[13].
Não foram, no entanto, os filmes precedentes nem os que a ele sucederam que fixaram essa imagem na memória colectiva. Estou em crer que a imagem do rapaz dos óculos pendurado periclitantemente por um ponteiro que está já descaído é uma imagem que funciona principalmente (e independente do contexto em crescendo, da sua leitura político-social ou da estratégia cómica de Lloyd) como súmula visual de um tempo que é já inacessível e irreprodutível – é o relógio! Nesse instante, onde Lloyd se agarra ao ponteiro, o relógio não é mais um dos obstáculos que lhe surgem. Pelo contrário, é através dele que o rapaz do óculos se salva. Ou seja, é por estar firmemente agarrado ao tempo, ao seu tempo, que Lloyd sobrevive, isto porque o seu tempo tem ponteiros por onde agarrar, porque os autocarros, os eléctricos puxados por cavalos, as carroças, os Ford’s modelo T, as motocicletas e as bicicletas, todos são alcançáveis e a todos Harold chega (com esforço é certo, mas chega). A velocidade do ponteiro nos anos 1920 era uma que permitia que as mãos a ele se agarrassem, e Lloyd agarrou-se sem cair. Pode até ter escorregado mas manteve-se firme – ele era do seu tempo e o tempo estava em sintonia com ele. Mas o espectador, que desde então vê essa imagem, já não pode deixar de a olhar com nostalgia, não só porque imediatamente o remete para outro cinema, para outro tempo, mas principalmente porque o remete para um tempo diferente do seu, onde já é difícil agarrar o ponteiro. Ou, como explica tão sucintamente o cartoon que Barry Blitt fez para a capa da revista New Yorker em Maio de 2001, num relógio digital Harold já não tem ponteiros onde se agarrar.
Se de facto Lloyd vivia e trabalhava em sintonia com a tecnologia de então, certo é também que essa tecnologia estava intimamente ligada ao corpo. Essa ligação vem-se perdendo com o desenvolvimento da tecnologia digital. O rapaz de óculos pendurado pela ponta do ponteiro é simbólico desse fim de coisas, um homem a querer agarrar-se a um tempo que inevitavelmente se move. E que ao mover-se deixa cair aqueles que a ele se agarraram. Se olhamos então essa imagem com a noção de que esse tempo já não se repetirá, também não podemos deixar de ter noção de que a obsolescência é subproduto inevitável da sociedade tecnológica em que vivemos e que nós também cairemos do ponteiro a que estamos agarrados (qualquer que ele seja).
A questão que se coloca é saber qual dos criadores de imagens conseguiu (ou conseguirá) colocar numa só estampa esse dilema que a fúria capitalista nos faz esquecer: de que tudo aquilo que somos e adquirimos virará tralha, e que pouco adianta agarrar com mãos firmes àquilo que é perecível por natureza, o nosso tempo. Lloyd era do seu tempo e nós do nosso. Ao vê-lo tomamos consciência disso, identificamo-nos com o rapaz dos óculos por vermos nele tudo aquilo que somos e tudo aquilo que gostaríamos de ser, mas também por lhe sentirmos o mesmo tipo de finitude que a arte sempre tenta elidir. Disse Agustina Bessa-Luís: “A força infinita encontra-se nesse movimento circular, movimento que está desprovido de qualquer violência. A violência produz um movimento finito”. O movimento circular é o do relógio, o tempo incessante, a proximidade do eterno – o relógio sem ponteiros de Bergman – e desse símbolo do infinito pendura-se um homem à beira da morte, a violência que produz um movimento finito. É esta tensão entre finito e infinito (entre o Clark Kent e o Superman) que define intimamente o rapaz dos óculos – e nos define a todos.
[1] É sabido que Orson Welles e Chaplin tiveram os seus desaguisados a propósito de Monsieur Verdoux (1947) – que Welles terá escrito e vendido a Chaplin o argumento, e que este último terá alterado levemente o texto, creditando-se como único argumentista (based on an idea by Orson Welles) -, e sendo Welles um homem rancoroso não podemos levar demasiado a sério as suas afirmações sobre o primeiro. No entanto, é curioso que, para Welles, Lloyd “was the geatest gagman in the history of movies (…), the gags are the most inventive – the most original, the most visual – of any of the silent comics” (My Lunches with Orson, conversations between Henry Jaglom and Orson Welles). Segundo ele, uma das coisas que fazia de Chaplin inferior aos demais era o facto de este se basear fortemente em gag men que eram mais originais que ele, não lhes dando nunca qualquer crédito (aliás, humilhando-os sempre que estes ousavam ferir a sua aura de génio solitário) – espelho do seu conflito com ele. Lloyd, por seu lado, sempre valorizou os seus gag men e os seus colaboradores, como torno claro adiante. Como curiosidade refiro apenas que o recém descoberto primeiro filme de Welles, a trilogia Too Much Johnson (1938) que faria parte de uma peça de teatro multimédia, incluía uma longa perseguição pelos telhados de Nova Iorque em clara homenagem aos gags e ao estilo de Lloyd – como também acontece com a primeira curta de Bresson, Les affaires publiques (1934), que cita quase directamente City Lights de Chaplin. Porque será que a inconsciência das primeiras obras tende para a comédia?
[2] A influência de Tol’able David deve ser relativizada, já que o sucesso do filme fez-se sentir não só em Lloyd, como em tantos outros cómicos silenciosos, em particular Buster Keaton (ainda que o filme de Lloyd seja uma assumida adaptação humorística). Por exemplo, a perseguição por um cão que abre o filme de Henry King surge de modo semelhante em The Scarecrow de Keaton, assim como a sua longa metragem Our Hospitality se constrói na mesma época, no mesmo ambiente rural e também sobre o feudo entre vizinhos.
[3] A relação entre Preston Sturges e Harold Lloyd não foi das mais animadas. O primeiro conseguiu convencer o segundo a regressar à feitura de filmes – seis anos depois do seu último filme – por várias razões, entre elas, ser um adorador dos filmes de Lloyd, ter conseguido o apoio financeiro Howard Hughes e com este fundado a produtora California Pictures e também, por ter prometido que Lloyd co-realizaria The Sin of Harold Diddlebock. Se o primeiro motivo era verdadeiro, também o era o segundo (ainda que o orçamento do filme tenha ascendido enormemente em parte por a California Pictures não ter estúdios obrigando a que a rodagem tenha ocorrido em quatro estúdios diferentes o que não agradou Hughes que re-montaria o filme encontrando-lhe quase 15 minutos, re-filmaria algumas cenas e renomeá-lo-ia Mad Wednesday) e assim o filme começou mais como produto da amizade dos dois e a feliz ocasião do financiamento. Mas as forças criativas eram demasiado intensas para poderem trabalhar conjuntamente e Sturges – que escreve aqui alguns dos seus mais extraordinários diálogos– não quis seguir as indicações do seu ídolo que lhe dizia que deveria haver um peso maior da comédia física em detrimento dos diálogos. Harold continuou como protagonista do filme de Sturges mas sem mão na realização, ainda que todo o filme se faça de constantes homenagens e referências à obra de do palhaço (já não tão) silencioso.
[4] Há uma dimensão autobiográfica em vários dos filmes de Lloyd (a começar pelo facto de várias das suas personagens se chamam Harold), mas há pelo menos dois, Hey There! (1918) e Movie Crazy (1932) – o primeiro um one reeler silencioso e o segundo uma longa metragem sonora distando 14 anos – onde este momento da vida de Harold Lloyd surge retratado: a sua entrada no mundo do cinema através dos seus primeiro trabalhos como figurante. Em Hey There! Harold invade um estúdio causando vários estragos e perturbando a rodagem dos vários filmes que lá se estão fazendo. Em Movie Crazy ele é um rapaz vindo do campo com a esperança de se tornar uma estrela de cinema, perdendo-se na desmultiplicação entre figuras e as suas imagens. Harold não sabe distinguir actor e personagem – algo que me parece ser fundamental para o compreender totalmente.
[5] Se é difícil definir o rapaz dos óculos (e Lloyd enquanto cómico), estou em crer que em Grandma’s Boy se esconde e se revela simbolicamente aquilo que é a maturação final desse personagem. Pois bem, no seu primeiro filme de cinco bobines (cerca de uma hora) o rapaz com óculos é um cobarde apavorado com o ataque de um vagabundo (!) que aterroriza o povoado e mais ainda, logo a começar. Harold cai num poço e as suas roupas encolhem tanto que lhe ficam comicamente acatitadas (como eram as de Lonesome Luke). Assim sendo, na sua primeira longa metragem Lloyd trata de se livrar das roupas justas que o agarravam à personagem mimética da de Chaplin, e mais ainda, ao fazê-lo, persegue, captura e entrega às autoridades o vagabundo malfeitor. Literal e simbolicamente, Lloyd afirma-se como personagem independente. Exactamente a propósito da questão da diferença de indumentária entre Chaplin e Lloyd, Sarris encontra uma outra leitura que me parece muito acertada na compreensão daquilo que define os personagens de cada um: “Lloyd’s characters are concieved in a spirit of repression, whereas Chaplin’s Tramp is conceived in a spirit of release. Yet, it is this bottling up of anger and aspiration that enables Lloyd’s characters to unwind with such furious force.”
[6] Há uma cena do The Kid Brother que funciona como momento charneira para esta ideia da revelação de uma natureza escondida. A certo momento Harold explica à bela menina que até então a imagem que fizera passar era falsa (I was just pretending), ao que lhe responde: ”But you can be what I think you are – wihtout pretending”. Ou seja, ao enganar, esconder, ocultar ou disfarçar, o rapaz dos óculos nem sempre está a revelar de si uma imagem falsa ou incoerente com a sua natureza, muito pelo contrário, ao fazê-lo, está a revelar-nos aquilo que ele é mas não tem coragem nem força para ser – a não ser em situações extremas de vida ou morte. Os problemas que Harold enfrenta são portanto catalisadores daquilo que existe nele em potência.
[7] Não é assim totalmente inesperado que a figura do rapaz de óculos de Harold Lloyd tenha sido a inspiração original para a versão oculta (e em potência) do Superman – Clark Kent (que tinha óculos e roupa civil) – criado em 1938. Ao passo que a identidade heróica foi inspirada na persona de Douglas Fairbanks. Este dado é mais do que uma simples curiosidade, já que revela que essa figura do Super-Homem, símbolo da América, ideal de força e beleza durante décadas, e ídolo para gerações, podia também ser um everyman. Confirma portanto a volatilidade do personagem de Lloyd e também o facto de em cada um de nós existir um super-herói em potência.
[8] Tim Lussier faz uma minuciosa análise comparativa da popularidade e dos lucros de Chaplin e Lloyd nos anos 20 (o período em que ambos começaram a dedicar-se às longas metragens cujos lucros de bilheteira podem ser mais certeiramente medidos). Contando apenas as longas metragens silenciosas de ambos, Lloyd fez na década mais de 15 milhões de dólares (15’734’685) ao passo que Chaplin fez na ordem dos 10 milhões (10’550’000). Por outro lado o dinheiro do primeiro distribui-se entre 9 títulos ao passo que o do segundo entre somente 3. A questão da produtividade também é notória, incluindo as curtas metragens: entre 1921 e 1924 Chaplin estreou um total de 14 bobines de filme, ao passo que no mesmo intervalo Lloyd estreou 38. Olhando para os tops da revista Photoplay sobre as figuras mais populares para os seus leitores, em 1924 Lloyd estava em sétimo lugar e Chaplin não surgia no Top 8. Em 1925 Lloyd constava no terceiro lugar e Chaplin do décimo quarto. De outro estudo comparativo ao longo da década pela mão de Richard Koszarski, An Evening’s Entertainment, conclui-se que a estrelas de cinema consistentemente mais populares eram Harold Lloyd e Douglas Fairbanks e acrescenta-se ainda que “Harold Lloyd was not only the most popular comedian of the 1920’s but, by the close of the silent era, the biggest box office draw in motion pictures”.
[9] A rodagem de Haunted Spooks teve que ser interrompida porque Lloyd, posando para os jornalistas que o visitavam na rodagem, fingiu acender um cigarro com o rastilho de uma prop-bomb, só que de prop a bomb tinha pouco e por sorte o palhaço estava posando o explosivo quando este rebentou. Ainda que tenha sofrido queimaduras no rosto, a explosão não afectou as suas capacidades cómicas. Contudo, decepou-lhe uma porção de dedos da mão direita. Em todos odos os filmes posteriores a sua mão é uma articulada (e muito realista) que calçava como uma luva. Exactamente essa mão falsa evitou que o leão de The Sin of Harold Diddlebock lhe retirasse mais algum pedaço. Se estes dois episódios são momentos de trivia, revelam também a perigosidade da actividade de palhaço e mostram quão arriscados eram os números que desempenhavam com aparente calma e segurança.
[10] Lloyd fotografou centenas de imagens estereográficas de estrelas de Hollywood, entre elas Marilyn Monroe, John Wayne, Sterling Holloway, Richard Burton e Roy Rogers. A sua neta, Suzanne Lloyd Hayes editou muitas destas fotografias no livro 3-D Hollywood: Photography by Harold Lloyd o qual vem acompanhado de um par de óculos 3D o que ironicamente nos coloca na posição do rapaz dos óculos a olhar as suas possibilidade figurativas – sem identidade fixa, o personagem percorre o catálogo 3D à procura da sua próxima personalidade mimética. Além desse, existe outro livro, Harold Lloyd’s Hollywood Nudes in 3D!, onde se fotografam várias modelos despidas. No sentido de que o rapaz dos óculos fica sempre com a rapariga no final, este livro funciona como uma espécie de epílogo onde o leitor acede, através das (coloridas) lentes de Harold, ao que o filme não pôde figurar.
[11] Richard Brody, no referido artigo, faz uma interessante raciocínio: numa América onde o trabalho físico era a ordem do dia, a comédia de então era naturalmente física, ao passo que, hoje em dia, quando o trabalho é tanto mais terciário (e como tal intelectual) a comédia popular é emocional – justificando-se assim o sucesso consecutivo de qualquer comédia romântica xaroposa.
[12] Só em 2005 foi editada a primeira colecção de DVDs com o conjunto completo das longas metragens e uma representação importante das curtas metragens – por acordo da fundação detentora dos direitos, gerida por Suzanne Lloyd – tendo Safety Last e The Freshman tido lançamentos restaurados pela famosa editora The Criterion Collection depois disso (e esperando-se o mesmo tratamento para alguns dos seus filmes sonoros).
[13] Há, no entanto, que ter noção que à época os homens-mosca eram figuras com alguma popularidade, tendo Lloyd conhecido um deles, Bill Strother, que juntamente com Roach contratou como mestre e duplo (ainda que na maior parte das cenas sejam de facto com Lloyd) tendo entrado como actor em Safety Last – o amigo que o inspira (e obriga) a enfrentar o seu medo de alturas. Lloyd sempre manteve secreto o método pelo qual conseguiu criar o efeito da fachada do prédio. Na referida entrevista afirmou mesmo que “we were actually up as high as you see in the picture”. Todavia, mais recentemente, alguns historiadores conseguiram (através dos ângulos de filmagem na baixa de Los Angeles) identificar o local da rodagem, resolvendo o mistério: uma réplica de uma fachada foi construída sobre o telhado de um alto edifício de modo a que uma câmara elevada pudesse criar a ilusão (através da presença constante da avenida movimentada no fundo do enquadramento) de que a acção em primeiro plano e a acção no fundo existiam no mesmo eixo.