A memória, dispositivo navegável e escorregadio, não é de fiar: tinha visto há coisa de 20 anos Barfly (Condenados pelo Vício, 1987) na televisão e o que tinha retido eram cenas num bar, uma atmosfera densa com uma iluminação frágil, uma languidez ao serviço de um par, que emborcava bebidas, suportado pelo balcão. Esse ténue rememorado é traído por este regresso ao filme, que usa de uma gramática desenvolta e escorreita, com uma transparência narrativa, herdada da Hollywood clássica, a ocultar a montagem e pontuada por uma iluminação subtil (fotografia de Robby Müller), eficaz como quem provoca um sopro nos rostos e figuras de Mickey Rourke e Faye Dunaway. Barfly foi uma das criaturas da Zoetrope, a utopia criada por Coppola, e encontrou as mesmas dificuldades de outros projectos, como por exemplo Hammett (Mistério em Chinatown, 1982) de Wim Wenders, como sejam a dificuldade em obter financiamento e uma longuíssima gestação, de cerca de sete anos.

Na primeira cena, nas traseiras do bar, Rourke, que procurara a briga tanto quanto o seu opositor, o barman, começa a levar pancada, e fica com o rosto e a roupa cobertos de sangue. Depois, Henry Chinaski (alter-ego de Charles Bukowski, protagonista de cinco dos seus romances, que escreveu o guião a pedido de Schroeder), chega a um quarto de hotel desarrumado, imundo, as paredes a desfazerem-se, como se o compartimento tivesse vida, a voz off envia-nos a epígrafe: “Há pessoas que nunca perdem a cabeça. Devem ter vidas abomináveis”. Um filme, então, sobre a honestidade, uma honestidade a toda a prova, que Bukowski ostentava no boomerang vida e obra e que o cineasta encontra equivalência com a permanente presença do sangue sobre a figura de Rourke.
Barfly é um filme, então, sobre a honestidade, uma honestidade a toda a prova, que Bukowski ostentava no boomerang vida e obra e que Schroeder encontra equivalência com a permanente presença do sangue sobre a figura de Rourke.
Bukovski (himself) testemunha o primeiro encontro de Rourke com Dunaway no bar, abençoa-o, e dá respaldo à construção do seu alter-ego, que conheceu talvez em Mulheres (Women, 1978) o seu magnus opus, um personagem que combina os excessos, do álcool e das relações problemáticas com mulheres, o niilismo e a insubordinação, com a erudição e, paradoxalmente, uma vontade de viver, de habitar a rua e o bar entre iguais (bêbados, prostitutas e vagabundos), num permanente balanço com um mal de viver, onde a escrita parece constituir um mero prolongamento. O escritor pareceu, logo após a estreia, pouco convencido relativamente ao seu personagem, apesar da fidelidade ao guião e aos diálogos que escrevera, mas com o tempo rendeu-se a Rourke, aos seus trejeitos, ao seu caminhar de pernas afastadas e de braços abertos, como um pássaro bêbado (barfly).

Antes do genérico final de One From The Heart (Do Fundo do Coração, 1982), pode ler-se “filmed entirely on the stages of Zoetrope Studios”, artificio em cima de artifício – pensamos no par Forrest/Garr da mais bela criação da Zootrope – ao inserirmos Barfly ironicamente nesta cápsula, da Las Vegas fabricada para as ruas de Los Angeles, um marriage made in heaven patrocinado pelo vício, a Wanda de meia idade e desmazelada (Dunaway despida das construções de filmes anteriores), que diz a Rourke que não quer apaixonar-se, ao que ele responde que até agora ninguém se apaixonou por ele; um desleixo que não abdica do corpo, uma química de par herdada da mais bela linha de montagem, de Hollywood:
Rourke: a primeira coisa que me chamou a atenção foram as tuas pernas.
Dunaway: acho que tive sorte com as pernas, com a cabeça nem tanto.
Rourke: Era capaz de passar horas a olhar para as pernas de uma mulher.
Dunaway: Tempo é o que não me falta.

Associamos projectos pessoais, como Barfly o foi para Schroeder, a uma linguagem e a um argumentário encriptado, coisa desmontada aqui, que na recusa do estatuto de auteur por parte do realizador, instala um palco sem degraus para os personagens, uma gentileza para a persona de Bukowski e para o par protagonista, numa narrativa livre, que troça da necessidade de conflito para se espraiar. Rourke é cativo por uma editora que procura domesticá-lo com luxos, ele escapa da gaiola dourada, regressa à rua, o único lugar que reconhece como autêntico.
A filmografia de Barbet Schroeder arrancou com More (1969): dois jovens, um alemão e uma norte-americana, em Ibiza, por entre drogas e os psicadelismos dos Pink Floyd. Numa obra suportada por um lugar, a casa da mãe do cineasta (que há-de produzir ecos a 45 anos de distância), é Estelle quem guia Stefan na exploração: “As pessoas que tomam cavalo [heroína] querem escapar da vida. As pessoas que fumam isto [erva] ou tomam ácido, querem intensificar as suas vidas”. Um casal a partilhar o vício, uma trip movida aos produtos de um tempo, do LSD e tudo mais, alienação e descoberta do mundo, sobre rochas que se dependuram no mar. O par há-de enfrentar moinhos de vento antes da morte por overdose de Stefan: o seu caixão transportado por uma carroça, como se estivéssemos noutro tempo, e ele tivesse padecido de peste na idade média, elementos da iconografia do romantismo a que o cineasta voltará. Depois da comunidade de turistas e reformados alemães em Ibiza, as explorações do vagabundo Schroeder andaram à procura de La Vallée (O Vale dos Perdidos, 1972), expedição de uma professora francesa à Nova Guiné, que sugere afinidades com territórios herzoguianos, no mesmo ano de Aguirre, der Zorn Gottes (Aguirre, a cólera de Deus, 1972), um vale que ficara “obscured by clouds”, sonoridades e titulo dos Pink Floyd, a abeirarem-se de The Dark Side of The Moon, também de 1972.

A mesma casa em Ibiza é o lugar de Amnesia (Amnésia, 2015), em que a grande fatia da narrativa se situa em 1990, após a queda do muro de Berlim, que Schroeder nos mostra pouco depois de nos apresentar aos personagens, Martha (uma projecção da mãe do cineasta), uma alemã de meia idade que vive de formal frugal e sem electricidade na casa habitada em More por Estelle e Stefan, e Jo, jovem DJ, também alemão. É mais uma vez a dinâmica do par, dos dois vizinhos que se aproximam mediados pela música, pela electrónica de Jo e pelo violoncelo esquecido de Martha. Mas desta vez o vício são as sombras do passado de Martha e da Alemanha, com ela a recusar tudo o que é germânico, a língua (os dois comunicam em inglês), os carros (carocha, o veículo de Hitler), os vinhos. Amnésia é, então, o nome do clube de electrónica em Ibiza, mas é também o desligar da história de Martha, que volta a pegar no violoncelo enquanto partilha os loops de Jo, a recordação de um professor de música judeu e uma história que se repete. Martha é tão alienada quanto o par de More: em dois planos Schroeder enquadra-a num quarto à luz de velas para depois nos deixar com um imenso mar nocturno, no que poderiam ser enquadramentos de um Murnau, elementos pontuais que surgem como contraponto à aparente falta de gravitas, de densidade que parece faltar ao filme. Na cena central, um almoço, junta Martha e Jo com a mãe e o avô dele (Bruno Ganz, um suíço, a voz da Alemanha), que concretiza um olhar que, por entre versões de cada um (o avô deixará de ser a referência de Jo ao revelar verdades incómodas, que são máculas de uma história colectiva), há um esforço de empatia por todos os personagens, como um prisma que vai rodando, uma resistência a um julgamento moral, um interesse irredutível pelo humano.

Barbet Schroeder
Barbet Schroeder, que teve uma retrospectiva integral da sua obra no LEFFEST de 2015, e reafirmou em entrevistas a sua recusa em assumir o estatuto de autor, com receio de se repetir, tem uma carreira tão acidentada quanto a sua biografia: nasceu no Irão, passou a infância na Colômbia, tendo feito estudos na Sorbonne (Paris); fundou a Films du Losange, onde produziu Fassbinder, Rivette [é um dos actores de suporte do par Juliet Berto – Dominique Labourier em Céline et Julie vont en bateau (1974] e Rohmer, como realizador deambulou pelo documentário e pela ficção, pela Europa e América do Sul, com algumas passagens por Hollywood, onde abordou com desenvoltura o thriller e o policial. Em Single White Female (Jovem Procura Companheira, 1992), Bridget Fonda, recentemente separada do namorado, passa a dividir o seu apartamento com Jennifer Jason Leigh que, sob a influência de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), opera uma transformação, como Stewart que reverteu Judy para Madeleine. Uma cópia de Fonda, que inclui o corte e a cor do cabelo, as roupas, Leigh possui, suga tudo o que pertence a Fonda, incluindo (literalmente) o namorado da outra, num neo-noir com um discurso feminista e um uso do corpo bastante desabrido para aquele período. Schroeder evita que o filme seja mais um do sub-género “vamos estropiar Leigh”, que terá começado com Verhoeven – Flesh + Blood (Amor e Sangue, 1985), com continuação no ano seguinte com o mesmo par – Rutger Hauer em The Hitcher (Terror na Auto-Estrada) e que teve a súmula em 2015, com o balde de sangue despejado por Tarantino em The Hateful Eight (Os Oito Odiados, 2015). Em Single White Female (Jovem Procura Companheira, 1992) distribuem-se espelhos, duplos e cópias, Schroeder promove os pares, eleva Leigh dos típicos (quase sempre menores) papéis de psicopata e força Fonda a partilhar o protagonismo: o cineasta ao lado dos seus personagens, dando-lhes espaço e perspectiva, sem os julgar.