Assim que os créditos finais inundam o ecrã, é difícil saber sequer por onde começar. Como articular o que acabou de passar pelos nossos olhos? Talvez seja inevitável pensar na derradeira questão que assistiu ao declínio da famosa boneca-fenómeno de luxo no início do novo milénio devido aos seus padrões de beleza correctivos e excessivo materialismo. É a alta, magra, tão terrivelmente perfeita por fora quanto inocente e ingénua por dentro Barbie símbolo de opressão ou poderá ela potenciar o movimento de empoderamento feminino, especialmente entre as jovens raparigas que a recebem como presente? Foi daqui que Greta Gerwig e Noah Baumbach partiram. A mera ideia de um projecto deste género era para lá de estapafúrdia. E ver o filme não dilui a incredulidade. É um penhasco preparado para a queda, tão grande quanto a dimensão da boneca. Replicar o seu mundo incansavelmente plástico e glamoroso e infinito no cinema teria que passar por aqui.
É importante dizer antes de mais que a febre da Barbie é inevitável. Primeiro porque não há nada mais delicioso do que ver tantos profissionais de cinema a divertirem-se assim on the job. E depois porque, claro, a Barbie toca-nos a todos. Ou já tivemos uma, já brincamos com uma ou já desejámos tê-lo feito. Enquanto uma amiga detestava a boneca porque se incluía dentro do padrão da mulher-bimba que ela rejeitava, eu recordo-me das duas barbies que a minha mãe me ofereceu e que eu rapidamente, segundo ela, “destruí” (fi-las à minha imagem, uma rapariga de cabelo azul pintado e um gigante piercing no nariz com um apetite pelo lado mais desconhecido da vida). Isto para dizer que nunca olhei para a boneca como o “ideal feminino.” Longe disso. Era o seu lado mais irrealista que era fascinante. Eu lembro-me de muito pouco com clareza, mas sei que tudo o que procurava era um escape da realidade. E via as bonecas enquanto matéria maleável oferecida à criação. Com uma Barbie na mão, eu e a minha irmã criávamos o nosso mundo. Ela era um manequim para uma personagem tresloucada e entusiasmante com carta de condução aos 16 anos porque era americana e nós também queríamos ser americanas e ter um carro descapotável e uma casa com escorrega. Por vezes tornamo-la tão andrógina, chegando ao ponto de nela pintarmos uma barba, que a minha mãe nem a reconhecia enquanto a boneca que nos tinha oferecido. Barbie equivalia a transformação, e a um brincar à idade adulta sem termos que nos preocupar com hipotecas ou quaisquer outras responsabilidades.
Nos tempos que correm, deve ter surgido uma lista estafante de ideias a desenvolver. E a realizadora toma a decisão de as explorar todas em número em vez de escolher a profundidade de uma estrutura talvez hollywoodiana, mas que teria nesse caso e por se tratar de um triângulo narrativo, mais espaço e definição para aprofundamento.
Gerwig e Baumbach sabem bem deste impacto pessoal e universal. Sabem também da toxicidade que a boneca foi espalhando enquanto o mundo crescia e se via forçado a libertar-se dela. Mas era fácil de adivinhar onde a história iria desaguar, apenas olhando para o corpo de trabalho passado de ambos. “O que é que tu queres?”, pergunta o presidente executivo da Mattel, Inc., interpretado por Will Ferrell, à boneca que a empresa fabrica deste 1959. Eventualmente esta apercebe-se que “quero ser eu a imaginar. Não quero ser a ideia.” Aqui está o filme de Greta Gerwig. A sua Lady Bird (2017), a sua Frances Ha (2012), e até a sua Jo em Little Women (Mulherzinhas, 2019). A auto-descoberta de Barbie enquanto pessoa e mulher. E a história de emancipação do seu namorado Ken, o solitário brinquedo e sidekick pouco brincado. O que o filme retém são, contudo, apenas tonalidades disto fomentadas em grande parte pelo cristalino design de produção. O resto o espectador sente-se quase na obrigação de completar.
Ao tocar no esqueleto do filme, tanto a introdução expositiva de “um dia na vida de…” como depois, no último acto, a típica pungência amplificam que o restante corpo é nada mais do que um empilhar desajeitado de componentes e camadas, umas em cima das outras. Sim, são absolutamente palatáveis, mas onde está a ponte reflexiva para o desembalar do individualismo? Nos tempos que correm, deve ter surgido uma lista estafante de ideias a desenvolver. E a realizadora toma a decisão de as explorar todas em número em vez de escolher a profundidade de uma estrutura talvez mais hollywoodiana, mas que teria nesse caso e por se tratar de um triângulo narrativo, mais espaço e definição para aprofundamento. Não ficamos então nunca radicados no parque de diversão da Barbie, como pensei. Partimos dele para depois dele a boneca sair. Gerwig provoca a crise existencial que a retira do status quo e da conformidade da caixa.
Para fazer isto, faz uso da narração extradiegética (de Helen Mirren), que a certa altura quebra a quarta parede, e situa o filme num universo meta onde Barbie será uma boneca que cai do pedestal de perfeição irrealista e tem que ir ao mundo real onde vivem os humanos evitar o pior: a sua transformação numa mulher real que não só queimou o pequeno-almoço como agora também tem pés de Birkenstock, celulite e não consegue parar de pensar sobre a morte. Dentro do esperado caleidoscópio pop terrivelmente consciente de si mesmo (como não?) e até muito crítico, Barbie (2023) poderia ser uma sátira ao capitalismo ou um comentário à América corporativa ou até ao ecossistema bimbo da praia de Malibu na Califórnia. Porque não?
Mas nem sátira nem comentários são aprofundados. Ficamo-nos pelo anúncio publicitário inundado pelo Pantone 219 C à Barbie original, básica e loira, a chamada Barbie Estereotipada da Mattel (Margot Robbie) que nem profissão nem propósito tem a não ser o de ser ela mesma a viver na utopia daquele barbie world feminista e supostamente intocável, uma manifestação insuflável-saltitante em cores pastéis com dias iguais que se repetem até ao fim do fim dos tempos na companhia de tantas outras Barbies. Aqui incluem-se um conjunto mais heterogéneo e fluído, no que diz respeito aos tipos de corpo, etnia e até género. Há uma presidente Barbie (Issa Rae), uma médica Barbie (Hari Nef), uma escritora Barbie (Alexandra Shipp), uma juíza Barbie (Ana Cruz Kayne) ou até uma Estranha Barbie (Kate McKinnon) que foi em tempos brincada demais e trata de todas as barbies que deixam de funcionar correctamente. Também se juntam outros modelos descontinuados como a Barbie Video Girl ou a Barbie Midge grávida. No meio disto tudo, os Kens são anexados a um mundo onde as mulheres ocupam os papéis principais de poder na sociedade. E ao contrário do que acontece no mundo real, estes homens são personagens afáveis e amistosas que não objectificam os seus pares femininos. O Ken da praia (Ryan Gosling) e famoso namorado da Barbie Estereotipada luta inclusive pela sua atenção e reciprocidade, a parte mais curiosa e intrigante, ainda que um pouco desaproveitada, de toda a trama.
Para agarrar o espectador, signos de fábula são injectados no filme e vislumbres sobre o crescer-de-idade impedem que este venha a perder o seu rumo. O controlo existe, mas a continuidade dos componentes não é oleada ao ponto de não darmos conta da sua junção. Tudo é minimamente coerente, tendo sempre em consideração o absurdismo do que estamos a ver, mas raramente é coeso. Por outro lado também, o cinema tem espaço para uma multiplicidade de ideias e coisas, mas ainda não consegue parar um filme assim de se tornar um objecto aos nossos olhos. Quando o mundo real influencia uma mudança no paraíso Barbieland, e um se vem a misturar e provocar a mudança radical no outro, é como que fosse atingido um ponto de exaustão. Será caso para dizer, so much ado about nothing? Ou estará este nada cheio? E cheio do quê?
No fim de contas, melhor não poderia vir daqui. Essa é uma certeza. Repudiar o filme é apenas e nada mais do que repudiar a máquina errática que possibilita que este exista.
Porque é um filme da Gerwig, e ainda bem, poderemos ver nele um ensaio que se apoia na filosofia feminista da boneca e, digam o que disserem, existe para ser pensado. Felizmente ela dá-nos isso. Tudo o resto é apenas ambição. Enquanto as bonecas estão a ser brincadas por alguém no mundo real, uma mãe (America Ferrera) e a sua filha abrem um fosso entre os dois mundos espelhados. E também não é só a Mattel e a enchente de executivos (todos homens, claro) que aparecem. Há um gesto de homenagem à criadora da boneca Ruth Handler, que num momento-chave visita o plateau de cartão e elucida a boneca do porquê da sua invenção – não sei bem porquê, mas veio-me à cabeça a conversa entre um falecido Dumbledore e Harry Potter na estação de King’s Cross no último filme da saga. Muito do resto é bem mais mecânico do que emotivo. Não estamos a sonhar. Esta é apenas a matéria-prima a partir de onde os sonhos são feitos. O que Gerwig faz com Barbie espelha precisamente o que eu fazia com as bonecas. Tudo é possível. Até números musicais parvos. Alcançamos, claro está, a arena queer gloriosa onde o paradoxo do modernismo da boneca retro e mulher-bimba ajuda a intensificar o facto de que isto é uma extravagância subversiva muito camp e ainda bem que esta habita tão bem o grande ecrã. As temáticas polvilhadas abrangem o desmascarar do patriarcado e da masculinidade tóxica – continua tão presente quanto antes, mas como nos dizem aqui, os homens aprenderam entretanto a esconder isso bem – como iluminam as questões da sexualidade feminina ou ensaiam o que acontece à sociedade quando há uma mudança de papéis de género, e até abordam os problemas do matriarcado. Não há nada em que Barbie não tente tocar. Quer ser canto de cisne.
Secamente divertido, Gerwig fez deste um lugar amigável. E foi de tal forma generosa que deu os melhores diálogos ao rapaz, deixando-o ofuscar o filme e roubar todas as atenções, até da própria Barbie. O inesquecível Gosling faz o filme brilhar, com particular relevância para um hilariante número musical, “I’m Just Ken”, o Blockbuster de Verão resumido a um momento, inspirado num John Travolta em Grease (Brilhantina, 1978) se este fosse dirigido pelo Gene Kelly do séc. XXI. Um pouco por todo o filme há gags que fazem chacota de si mesmas e diálogos palavrosos e académicos proferidos com a rapidez da comédia screwball, mas são as one-liners que marcam o ritmo e determinam a marcha do filme, confirmando-o enquanto mosaico avassalador que é (tantos são os pontos de exclamação discursivos). Na verdade, avassalador teria que ser ou não teríamos o rant apaixonado de America Ferrera onde esta expõe a impossibilidade de se ser uma mulher no mundo real -“é sempre culpa tua”. Há demasiado a corrigir e também há demasiado ainda a compreender. E Gerwig não prega, quer que nos divirtamos enquanto fala desta realidade em que vivemos todos. Se não soubesse melhor, diria que a boneca está até a ser olhada em retrospectiva, como se já não existisse. Umas colheres de nostalgia são, sem dúvida, deitadas por cima de um filme que se move do momento mais foleiro imaginável para um episódio de activismo político sem sequer pestanejar.
No fim de contas, melhor não poderia vir daqui. Essa é uma certeza. Repudiar o filme é apenas e nada mais do que repudiar a máquina errática que possibilita que este exista. Agora se este precisa ou não de existir é tópico para outro texto muito diferente. Pessoalmente, fico contente que o tenham conseguido fazer! Ainda existe esta Hollywood que arrisca assim. Há, no entanto, e como em quase tudo, uma garantia. Menos é sempre mais. Em Barbie, menos teria aliviado um mundo que já não aguenta mais barulho e mais discursos e mais histórias, especialmente as que nos chegam apenas rascunhadas e juntas às três pancadas sem uma clara linha de pensamento. Entendo que um filme sobre a Barbie só se faz uma vez, e deve ser difícil combater o desejo de não o abarrotar de tudo e mais alguma coisa. Ainda assim humanizar a boneca tinha mesmo que estar nos planos? Encontra-se no argumento o mesmo conflito que existe no mundo da Barbie. Tudo pode mudar de um momento para o outro sem haver uma conversa sobre. Talvez tenha sido por isso que ansiei pelo regresso da boneca à sua caixa, que é o mesmo que dizer à minha imaginação. Porque é que a Barbie não pode ser só uma boneca? Posto isto, tenho que dizer que compreendo e aplaudo a realizadora. É só fora da caixa que tudo acontece. Precisamos de viver num mundo onde ninguém é colocado numa caixa, nem a Barbie! A vida humana é, tal como a boneca de Gerwig, maravilhosamente caótica e contraditória e há que abraçá-la assim.
★★☆☆☆