A pintura tem em si uma força divina capaz não só, como se diz da amizade, de tornar presentes os que estão ausentes, como também os mortos depois de muitos séculos quase vivos.
Leon Battista Alberti, em De Pictura
No último filme da sua extensa obra cinematográfica, com o título 24 Frames (2017), em que o cineasta iraniano Abbas Kiarostami trabalhara vários anos, se bem que o mesmo tenha acabado por ser finalizado pelo filho Ahamad Kiarostami e tenha tido a sua estreia póstuma no Festival de Cannes em Maio de 2017, este quis deixar expressa uma interrogação ontológica sobre a imagem – pictórica, cinematográfica, digital – através de um cartão de início, em que diz: «Sempre me perguntei até que ponto o artista pretende retratar a realidade de uma cena. Os pintores captam apenas um fragmento da realidade e nada antes ou depois dele. Para 24 Frames, comecei com uma pintura famosa, mas depois mudei para fotografias que tirei ao longo dos anos. Acrescentei-lhes cerca de quatro minutos e meio do que imaginei que poderia ter acontecido antes ou depois de cada imagem que captei.»
Sabe-se que o projecto passara por outras configurações. Numa versão inicial, abandonada devido aos custos incomportáveis dos direitos, haveria uma selecção de pinturas célebres sobre as quais, mediante recurso a imagens geradas por computador (CGI) e a design de som, as cenas imaginadas corresponderiam a um prolongamento narrativo para além ou para aquém do «instante decisivo» captado pelo pintor. Faltaria apurar se se trataria de uma variação da engenhosa formulação de Lessing – “a pintura em composições coexistentes pode utilizar apenas um único momento da acção, devendo então escolher o mais pregnante, através do qual se torna mais compreensível o que está antes e o que vem depois”[i] – que estabelece, para escapar à contradição, poder representar-se um acontecimento inteiro figurando apenas um instante desde que esse instante exprima a essência do acontecimento. Na versão que deu origem ao filme, tendo da selecção de pinturas restado apenas a de Pieter Bruegel, o Velho, os outros quadros foram imaginados a partir de fotografias tiradas ao longo dos anos pelo próprio Abbas Kiarostami, que para o filme trabalhou em cerca de quarenta, de que foram depois escolhidos os 24 quadros que integram o 24 Frames.
O filme surge, naturalmente, na encruzilhada entre o cinema, a fotografia e a poesia. Por um lado, é cada vez mais clara a inclinação de Kiarostami para a fotografia: «Neste momento sinto-me mais fotógrafo do que cineasta. Acontece-me pensar: como fazer um filme em que não se diria nada. (…) Se as imagens podem transmitir uma tal força ao outro para as interpretar, e extrair um sentido que eu desconhecia, então mais vale nada dizer e deixar o espectador imaginar tudo»[ii]. Por outro lado, com o grafismo, que sempre considerou a base da sua formação primordial e que durante largos anos constituiria a sua profissão, aprendera a condensar um filme inteiro numa única imagem, e descobrira igualmente que essa arte da compressão radical se conseguia através da simplicidade e da elegância que fazem «a justeza de um poema».
E, no entanto, quer o título quer o procedimento exemplificado no Frame 1 são enganadores. Delimitado visualmente por um fundido a negro em que aparece a numeração sequencial, e uma duração aproximada de quatro minutos e meio, como acontece nos 23 seguintes, esse primeiro Frame abre com a reprodução duma pintura a óleo sobre madeira do mestre flamengo da Renascença Pieter Bruegel, o Velho, intitulada Caçadores na Neve (1565), obra que faz parte de uma série em que são retratados aspectos da vida quotidiana em diferentes épocas do ano, sendo este, provavelmente, o último quadro do ciclo, cujo tema do final de expedição é sugerido na outra designação, Regresso dos Caçadores, pela qual esta pintura é igualmente conhecida. A introdução sucessiva de outros elementos na vista enquadrada (já voltarei à questão das denominações), tais como o som ambiente, a neve, o fumo das chaminés, e outros animais (vacas que atravessam, cão que fareja, pássaros que voam) faria crer que é deles que dependeria a vida no quadro ou a sua animação, bem como a nossa percepção do movimento e do tempo. Note-se, contudo, que o Frame 1 retoma no fim a configuração inaugural da pintura de Bruegel, o que não deixa de ser um aviso de que as coisas não se passam assim. Pelo contrário, tudo o que é susceptível (plausível, verosímil, necessário) de imaginariamente se passar, acontece no tempo que foi dado pela pintura. E, mais do que isso, o fragmento que se impõe, captado pelo pintor, continua a desafiar a nossa imaginação, saltemos nós para antes ou para depois dele, como «um bloco de sensações que se sustém, que existe em si», à prova do tempo.
A aparente replicação do procedimento adoptado no Frame 1 nos seguintes, com a diferença de que nestes o ponto de partida são fotografias realizadas ao longo do tempo por Abbas Kiarostami, introduz um elemento inteiramente sem referência, aleatório, relativamente à tarefa que caberia ao espectador de imaginar um antes ou um depois do momento decisivo, determinado pelo disparo da máquina fotográfica, uma vez que as fotografias que estiveram na origem do prolongamento narrativo a que Kiarostami se entregou, e nos propõe que continuemos, não são apresentadas. Em tais circunstâncias, dir-se-ia, que a imaginação do espectador, mais do que num prolongamento narrativo, haveria de ocupar-se com o momento singular originalmente captado pela máquina fotográfica de Kiarostami. Como envolver-se, então, em tal empreendimento criativo e o que pode o espectador dele retirar?
A experiência de vida de Abbas Kiarostami parece conter indicações preciosas sobre como via as coisas, em três momentos sucessivos: «Aos onze anos tinha um pequeno projector e via as películas fotograma a fotograma, como se fosse uma colecção de selos»[iii]; pelos vinte anos «a realização de anúncios (de 1960 a 1969 realizei mais de cento e cinquenta) foi a minha escola de cinema: aprendi a transmitir uma ideia em pouco tempo (…), às vezes é necessário resumir tudo em trinta segundos»[iv]; na década seguinte, aos trinta anos, no Kanun, o Instituto para o Desenvolvimento Intelectual das Crianças e Adolescentes, «os primeiros dez anos de actividade do departamento de cinema foram um período único. Até ao princípio de 1979, o Instituto tinha produzido, entre curtas e longas-metragens, quase cento e quarenta filmes, entre os quais muitos desenhos animados. (….) Os nossos trabalhos eram depositários de uma reflexão que não existia nos filmes daquela altura»[v].
Dessa reflexão advirá a convicção de Kiarostami, que parece consolidar-se na inversa medida da sua paciência para suportar «o cinema narrativo», segundo a qual uma «fotografia não conta uma história, mas deixa-nos a liberdade de a imaginar». Uma tal afirmação não deverá, contudo, induzir em erro, pois Kiarostami não se cansa de insistir num ponto, para si, crucial de que as suas «fotografias são as mesmas de quando foram tiradas», que «a moldura preta que circunda o negativo da imagem», encerrando «o fotograma como um documento», é que lhes confere validade.[vi]
Nas três coisas (tempo, objectiva, tema) que, em seu entender, contam na sua intervenção criativa tudo parece convergir para a definição do que é decisivo no momento do disparo: «O importante é o enquadramento. (…) Ao escolher e enquadrar alguma coisa, dá-se-lhe a dimensão da importância que provém do facto de a ter seleccionado. No momento em que se selecciona algo, confere-se-lhe um valor acrescentado que o separa de toda e qualquer outra coisa.»[vii]
Embora, aparentemente, contradizendo Kiarostami para quem «a linguagem da fotografia não necessita de palavras e, no seu caso, nem sequer de didascálias», sou levado a supor o que Walter Benjamin teria acrescentado: «O que devemos exigir ao fotógrafo é a capacidade de dar à sua fotografia uma legenda que a subtraia ao desgaste pela moda e lhe confira o seu valor de uso revolucionário.»[viii]
Relativamente a 24 Frames, tratando-se por princípio de planos fixos, cuja composição mostra, aliás, em vários deles uma dupla moldura, ao eleger como critério primordial o enquadramento, a escolha do momento de disparo da máquina e do tempo de exposição à luz da película ou do sensor (determinado pela abertura/fecho do obturador) acabaria por ficar secundarizada relativamente à determinação do que no frame – instantâneo, fragmento, quadro – sustenta a imaginação narrativa, a que Kiarostami na citação acima chamava a liberdade de imaginar.
Haverá, por isso, necessidade de voltar à questão da denominação. Sem a extensão e grau de pormenor com que já foi feito, mas aqui não cabe, há que indagar «qual seria no cinema o equivalente de um quadro», revisitando o dispositivo cénico conhecido por quadro vivo.
Nos capítulos 5 e 6 da segunda parte de As Afinidades Electivas, Goethe oferece-nos, com extraordinária riqueza de pormenores e rara vivacidade, o dispositivo cénico de uma forma de representação em voga no seu tempo e de Kleist: o quadro vivo. Quadros célebres, como os de Van Dyck ou Poussin, ou mesmo provindo dos chamados presépios, eram repostos, em cenários concebidos para o efeito, diante de uma vasta assistência; para neles representarem, a escolha recaía «em pessoas tão bem formadas às quais não falta[va] certamente nada para poderem imitar movimentos e atitudes dignos de ser pintados». Se para a selecção das gravuras ou género de instalação a adoptar, sobretudo no que respeita à iluminação, ou mesmo para a confecção do guarda-roupa, era requerida muita preparação e envolvimento dos intervenientes, o certo é que «uma tal imitação [representar quadros verdadeiros já muito conhecidos] ainda que dê muito trabalho na sua organização, provoca, em contrapartida, um prazer inacreditável».
Quer isto dizer que é, sobretudo, do ponto de vista da economia emocional que estes quadros vivos merecem ser considerados. Concebidos como dispositivos de representação estática, confiada a grupos de personagens imóveis, pode mesmo afirmar-se que aquilo que melhor os caracteriza é a intensidade na imobilidade. Esta tem na sua origem uma forma, sem dúvida, paradoxal de repartição da actividade/passividade na relação entre paralisia fascinante e intensa agitação.
A narrativa de Goethe não deixa de incluir aspectos dessa dinâmica entre “personagens” do quadro e assistência, mediada pelo, também ele contraditório, “efeito de real”: ora a apreciação afirma que a «imitação viva ultrapassava em muito a gravura do quadro [a imagem original] e despertou o encanto de todos», ora considera que «a realidade como quadro oferecia vantagens particulares», para logo contrapor que «a presença do real em vez da presença do aparente [da imagem] causava uma espécie de angústia». Ao mesmo tempo tudo parecia suspenso entre o momento em que «a imagem pareceu ter-se imobilizado, e tornar-se estática» e aquele em que a angústia advém da percepção do fim iminente da representação através da quebra da imobilidade: «o conhecedor sensível que houvesse contemplado esta aparição teria receado ver nela qualquer movimento».
Contudo, o aspecto mais surpreendente parece ser o que por ora designaríamos de anterioridade figural, que determina que antes da sua própria composição «tudo parecia estar já a postos para o quadro». Talvez se pudesse dizer, uma anterioridade que convoca o quadro ou, então, que o anuncia.[ix]
O testemunho de Elisa Resegotti sobre o método de trabalho de Kiarostami como fotógrafo, e da sua exigência em «arranjar sempre um motivo gráfico antes de fotografar» poderá, talvez, ajudar a conceber a necessidade de uma anterioridade afectiva ainda mais primordial: «A fotografia é um instante, certamente fugidio, mas Kiarostami, pacientemente, obstinadamente diria eu, espera, procura, retorna até que o seu olho veja aquilo que o coração sugere e pede»[x].
No Frame 24, o derradeiro quadro da obra de Kiarostami, uma rapariga parece ter adormecido enquanto a sequência final de The Best Years of Our Lives (Os Melhores Anos das Nossas Vidas, 1946), de William Wyler, corre lentamente no monitor, tendo como banda sonora a música “Love Never Dies” de Andrew Lloyd Webber, retardando o aparecimento do cartão de fecho com o “The End”.
Apesar de apócrifa, a afirmação atribuída a Jean-Luc Godard, segundo a qual «o cinema começa com D. W. Griffith e termina com Abbas Kiarostami»[xi], terá contribuído para que este filme pudesse ter sido tomado por uma espécie de testamento, paradoxal, sobre o cinema exibindo o seu próprio fim.
Contradirei, porém, esse augúrio apoiando-me nos que de forma cúmplice a mim se têm juntado confessando que já, por análogo cabeceio, lhes aconteceu terem saltado a cena imperdível de La Grande illusion (A Grande Ilusão, 1937) de Jean Renoir, pois a todos tenho ouvido afiançar que tal não lhes acontecerá da próxima vez que o filme passar.
E junto a vigorosa afirmação de Jean-Luc Nancy, a propósito Zendegi va digar hich (E a Vida Continua, 1992), mas que se ajusta a este caso: «[A fotografia] reenquadrada, no filme, diz: o cinema é isto, montagem e enquadramento e efeitos especiais. A vida continua, antes, depois do cinema, mas também através dele, e até como ele. O que se trata é de enquadrar a vida, o contínuo»[xii].
O que não se apresenta tão óbvio de realizar, pois em momentos em que o cinema dá primazia à vida – belo exemplo – como em Vivre sa vie (Viver a Sua Vida, 1963), que no seu título longo é dito Vivre sa vie: Film en douze tableaux (Viver a Sua Vida: Filme em 12 Quadros), o recurso na construção fílmica à segmentação em quadros, quais fragmentos discretos e descontínuos, no “Quadro 11. Nana faz filosofia sem o saber” traz-nos de volta o Mosqueteiro «Porthos, o grande, o valente, um tanto estúpido. Uma vez tinha de pôr uma bomba num subterrâneo para o fazer rebentar. Fá-lo, põe a bomba, acende a mecha, foge, naturalmente. A correr, de repente, põe-se a pensar. Pensar em quê? Pergunta-se como é possível pôr um pé à frente do outro. Então pára de correr, de andar: já não pode avançar. Explode tudo, o subterrâneo cai-lhe em cima (…), é esmagado e morre. Assim a primeira vez em que pensou, morreu por isso».
A conclusão tirada pelo filósofo (Brice Parain) na conversa com Nana (Anna Karina) de que «a vida com pensamento supõe que se matou a vida quotidiana, demasiado elementar» apresenta-se excessivamente cruel para quem, quando estas crónicas começaram, com ar, porventura, imoderadamente incisivo, afirmava «o cinema como metamorfose da experiência interior».
Enquanto às voltas andamos com a pergunta de Nana sobre se «o amor não devia ser a única coisa verdadeira?», segue o filme da nossa vida. Se relativamente à percepção da mesma ainda não o sabemos bem, mas faz cada vez mais caminho a «ideia de que a consciência é composta de momentos discretos», no que respeita à rodagem cinematográfica do filme da nossa vida (constituição presente do nosso passado, com quadros esquecidos, apagados, substituídos, imaginados) não há dúvida que se trata sempre de instantâneos, de momentos discretos em que, qualquer que seja o número de fotogramas ou de frames por segundo, o simples facto de esse número poder ser variável só acentua a realidade da existência de um espaço-tempo negro entre eles, um tempo perdido, não colectável.
Se bem que a vida não seja um exercício de percepção, a especulação prossegue sobre «o modo como a continuidade visual é percebida ou construída e, por extensão, sobre a aparente continuidade da própria consciência. Eles [Crick e Koch] propuseram que a «a consciência [no que concerne à visão] é uma série de instantâneos estáticos, com o movimento “pintado” sobre eles […] [e] que a percepção ocorre em momentos discretos»[xiii].
Mas havendo, para além disso, uma inexorabilidade técnica na captação e registo ou geração de imagens, evidenciada na decomposição do que aparentava ser contínuo, desde sempre, o cinema usou a melhor forma de lidar com a fragmentação e a descontinuidade, entregando essa tarefa de reconstrução, de ligação, de montagem, na procura reiterada da justa posição dos fragmentos – em que somos realizadores do filme da nossa vida e ao mesmo tempo o seu assunto – ao trabalho do espectador activo, participante, que apelidei de rebobinador.
E, assim, termino com versos de Ruy Belo, onde também encontrei o título para esta última crónica desta série:
«lembro-te apenas o que te esqueceu // Não temas porque tudo recomeça / Nada se perde por mais que aconteça / uma vez que já tudo se perdeu»[xiv].
[i] Gotthold Ephraim Lessing, Laocoonte, Biblioteca Universale Rizzoli, [1776] (Milano: Rizzoli, 1994), 251.
[ii] Abbas Kiarostami, «Conversa entre Abbas Kiarostami e Jean-Luc Nancy», em Abbas Kiarostami (Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2004), 145.
[iii] Abbas Kiarostami, «No trabalho (parte I)», em Abbas Kiarostami (Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2004), 32.
[iv] Kiarostami, 36.
[v] Kiarostami, 37–38.
[vi] Abbas Kiarostami, «Duas ou três coisas que sei de mim», em Abbas Kiarostami (Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2004), 22.
[vii] Kiarostami, 14.
[viii] Walter Benjamin, «O autor como produtor», em A Modernidade, trad. João Barrento, Obras escolhidas de Walter Benjamin / 3 (Lisboa: Assírio & Alvim, 2006), 284.
[ix] José Bogalheiro, Empatia e Alteridade: A Figuração Cinematográfica como Jogo (Lisboa: Sistema Solar / Documenta, 2014), 393–94; Johann W. Goethe, As Afinidades Electivas, trad. Maria de Assunção Pinto Correia, [1810], Obras Escolhidas / 4 (Lisboa: Relógio d’Água, 1999), 222, 223, 236, 225, 224, 237, 237, 223.
[x] Kiarostami, 182.
[xi] Jean-Michel Frodon e Agnès Devictor, Abbas Kiarostami: L’œuvre ouverte (Paris: Editions Gallimard, 2021), 7, 17.
[xii] Abbas Kiarostami, «Correspondência(s)», em Abbas Kiarostami (Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2004), 191.
[xiii] Oliver Sacks, O Rio da Consciência (Lisboa: Relógio d’Agua Editores, 2017), 155–56.
[xiv] Ruy Belo, «Homem de Palavra(s) / UMA VEZ QUE JÁ TUDO SE PERDEU», em Todos os Poemas (Porto: Assírio & Alvim / Porto Editora, 2014), 312.