Um drama épico sobre uma série de crimes que caracterizam um certo período histórico da América do Norte não é nada de novo na filmografia de Martin Scorsese, mestre em retratar certas comunidades ou momentos através uma série de personagens complexas e os seus actos de violência. Mas Killers of the Flower Moon (Assassinos da Lua das Flores, 2023) não é de forma alguma uma simples repetição ou resumo dos filmes anteriores de Scorsese, é antes disso uma expansão na sua abordagem a um tema familiar, com maior ênfase no registo histórico, e principalmente, um olhar íntimo sobre o destino e motivações de uma série de personagens. Se em filmes como Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990), Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973), Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980), Casino (1995), a violência é um meio premeditado de agir sobre o mundo para construir uma história própria, em Killers of the Flower Moon esta violência aparece como algo sistémico, inescapável, inerente a uma sociedade em que o materialismo e a propriedade são valores dominantes, um reflexo do sonho-pesadelo americano no início do século anterior.
Killers of the Flower Moon começa em 1918, logo a seguir ao final da primeira Guerra Mundial, com o regresso de Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) a casa do seu tio, William Hale (Robert De Niro), proprietário de uma quinta em Oklahoma em pleno território da tribo indígena Osage, que lhe permite ter uma relação próxima com os membros dessa tribo, sendo visto até como uma espécie de bem-feitor e conselheiro junto dessa comunidade. Ernest testemunha desde logo a boa fortuna dos Osage com a descoberta de petróleo nas suas terras e que lhes traz prosperidade. Depois de um encontro inicial entre Ernest e o seu tio, uma conversa (com uma das melhores frases do filme: “don’t need to call me sir, you can call me uncle or King”) que evidencia também desde logo o carácter submisso e algo simplório de Ernest (e também de inútil: na guerra afinal serviu apenas como cozinheiro, e as únicas mortes que viu foram por causa de doenças), com a orientação do seu tio, Ernest aproxima-se de uma mulher Osage, atrás de um casamento por interesse. Essa mulher é Molly (Lily Gladstone), uma Osange de carácter introvertido e menos exuberante que as suas irmãs, mais cuidadosa com quem permite chegar-se perto dela. Eventualmente ela e Ernest acabam por se apaixonar, mesmo estando os dois cientes da natureza transacional da sua relação (um dos temas do filme), porém a sua ligação parece sincera, transparente até. Uma série de crimes violentos vai atingir a comunidade Osange, com a família de Molly no centro de uma disputa pelos direitos às terras onde há petróleo, com Ernest e Hale por perto.
Este épico ambivalente-relutante é um retrato raramente tão sombrio e desolador da natureza humana, de uma crescente tristeza aflitiva, que só por isso merece um lugar de destaque na filmografia de Scorsese.
Scorsese recorre a uma variedade de elementos para criar uma riqueza cénica hiperactiva, mas mantém sempre no centro dois aspectos: a narrativa e o seu arco bastante convencional e linear (dividido em capítulos clássicos, como “o primeiro encontro”, o “casamento”, “a primeira morte”, etc), e o trabalho de actores e foco nas suas expressões e acções para neles encontrar um significado mais profundo da história. Nestes aspectos, Killers of the Flower Moon é irrepreensível, mesmo que exagerando no número de artifícios usados (os voice-overs que surgem sem justificação, as imagens a preto e branco a imitar o documentário, as vinhetas com pequenas histórias laterais), algo comum em Scorsese, que por vezes substitui qualidade por quantidade – compare-se os filmes mais sóbrios (visualmente) como The Irishman (O Irlandês, 2019) ou Taxi Driver (1976), com os mais espalhafatosos (e superficiais) como The Wolf of Wall Street (O Lobo de Wall Street, 2013). Porém, o filme acaba por se dispersar e andar em círculos sobre si mesmo em termos narrativos, particularmente devido às indecisões de Ernest e acima de tudo por perder o seu ponto de conflito e tensão, devido à submissão total do protagonista (Ernest) ao seu antagonista (Hale), que este nem sequer reconhece como tal até perto do final.
Este novo filme tem bastantes pontos em comum com o anterior The Irishman (além da longa duração): em ambos, a personagem principal acabou de chegar da guerra, e o seu recomeço passa por trabalhar como motorista para alguém que parece estar a ajudá-lo mas que na verdade se aproveita da sua vontade de agradar, rapidamente envolvendo-se numa série de crimes que irão deixar marcas na sua condição mental; em ambos, os casos o protagonista luta apenas pelo “seu” pedaço do sonho americano, sem perceber o mal que causa aos que lhe são próximos. É talvez a maior diferença em relação a The Irishman: se aí a personagem principal, o nosso narrador, era uma personagem complexa, capaz de dúvidas e auto-reflexões sobre as suas acções, colocando a mortalidade ou efemeridade como questões centrais ao filme, em Killers of the Flower Moon, a personagem principal é incapaz de perceber o alcance das suas acções, incapaz de agência própria: Ernest é tão apaixonado pela mulher como por dinheiro e pelo poder, e com tanto medo do seu tio e de perder o seu apoio que age contra os seus próprios interesses. Isso elimina qualquer tensão, por causa da sua subserviência ao tio, retirando carga dramática ao filme, tornando-se apenas numa tragédia previsível. Em The Irishman, uma metáfora dominava grande parte do filme: o protagonista que na guerra tinha executado vários inimigos capturados, ficava surpreendido como estes cavavam a sua própria sepultura antes de serem mortos, como se ao fazer um bom trabalho talvez fossem absolvidos – em Killers of the Flower Moon, Ernest é a pobre alma que cava a sua própria sepultura sem o perceber.
É certo que essa própria incapacidade de agir por si só é uma crítica forte à personagem, funcionando como uma alegoria para quem só vê o que está à sua frente, só pensa no imediato e ignora o longo prazo, um espelho de uma sociedade obcecada pelo lucro e que encontra neste período histórico parte da génese do seu funcionamento – muito longe mesmo assim da ferocidade e assertividade de There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007), de Paul Thomas Anderson, na crítica ao individualismo e reconhecimento do capitalismo americano como intrinsecamente ligado à violência. Aqui, isso é feito de forma tão evidente (como quando Ernest repete “I sure love money” ou “I love my wife almost as much as I love money”), que retira complexidade à justificação das suas acções, tornando-se numa personagem unidimensional, preso à sua incapacidade (Leonardo DiCaprio é aqui verdadeiramente impressionante em retratar esse vazio interior de Ernest, sem dúvida, um ponto alto da sua carreira; é aqui acompanhado pela desconhecida Lilly Gladstone, sempre assombrosa). Ao mesmo tempo, a personagem mais complexa, Molly, acaba por desvanecer em segundo plano, e o filme perde parte do seu interesse inicial quando abandona as incertezas e medos dos Osage para seguir o ganância destrutiva da família de Ernest.
De certa forma, este é o filme de Scorsese mais próximo dos irmãos Coen e das suas tragédias-odisseias [No Country for Old Men (Este País Não É Para Velhos, 2007), A Serious Man (Um Homem Sério, 2009), Inside Llewyn Davis (A Propósito de Llewyn Davis, 2013), O Brother, Where Art Thou? (Irmão, Onde Estás?, 2000)], sobre tristes personagens presas ao fatalismo da sua condição, algo que não é tão comum a Scorsese, se pensarmos nos seus filmes repletos de personagens a tentar furar-romper com o seu destino, muitas vezes recorrendo a uma violência catártica [Taxi Driver, Raging Bull, etc.]. Ainda assim, este épico ambivalente-relutante (porque apesar da escala abrangente tem dúvidas em aprofundar os seus temas e é contido pelo vazio do seu protagonista) é um retrato raramente tão sombrio e desolador da natureza humana, de uma crescente tristeza aflitiva, que só por isso merece um lugar de destaque na filmografia de Scorsese.
★★★☆☆