- Kuolleet lehdet (Folhas Caídas, 2023) de Aki Kaurismäki – 86 pts.
- The Zone of Interest (A Zona de Interesse, 2023) de Jonathan Glazer – 80 pts.
- Aku wa sonzai shinai (O Mal Não Está Aqui, 2023) de Ryûsuke Hamaguchi – 75 pts.
- Nu astepta prea mult de la sfârsitul lumii (Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, 2023) de Radu Jude – 53 pts.
- Challengers (2024) de Luca Guadagnino – 45 pts.
- Bowling Saturne (Bowling Saturno, 2022) de Patricia Mazuy – 44 pts.
- The Substance (A Substância, 2024) de Coralie Fargeat – 38 pts.
- Megalopolis (Megalópolis, 2024) de Francis Ford Coppola – 38 pts.
- Rapito (O Rapto, 2023) de Marco Bellocchio – 37 pts.
- Juror #2 (2024) de Clint Eastwood – 37 pts.
Marca histórica de 25 participantes no nosso balanço anual redunda num “cromo repetido”, mas desta feita encimando a nossa lista final: Aki Kaurismäki, que em 2012 esteve próximo de conseguir tal proeza com Le Havre (2011), tendo sido nesse ano – o da fundação do nosso burgo – o primeiro lugar ocupado por Tabu (2012), de Miguel Gomes, realizador agraciado com o Prémio de Melhor Realização em Cannes, graças a Grand Tour (2024), e que é um dos grandes ausentes deste balanço final (mas não fica esquecido nos balanços individuais).
Podemos dizer que o Festival de Cannes não se saiu particularmente bem aqui: as duas Palmas de Ouro estreadas em 2024 não chegam a integrar a nossa selecção de dez. Tanto Anatomie d’un chute (Anatomia de uma Queda, 2023), de Justine Triet, quanto Anora (2024), de Sean Baker, foram ultrapassados por obras que, no dito festival, “correram por fora” e acabaram arredadas da luta pela Palma: The Zone of Interest, de Jonathan Glazer, quase “o filme do ano” para o nosso website, venceu várias distinções mas acabou de mãos a abanar no que diz respeito à consagração máxima; The Substance, o controverso “body horror” de Coralie Fargeat, arrecadou a distinção de Melhor Argumento, e Megalopolis foi o filme mais divisivo do ano (“along the great divide” aqui e aqui), mas Coppola, detentor de duas Palmas de Ouro, foi o centro de uma homenagem bonita durante o certame, ainda que tenha de lá saído de mãos a abanar.
Sublinhe-se que o realizador finlandês, Aki Kaurismäki, esteve em Lisboa em 2023 para apresentar algumas sessões de um ciclo retrospectivo com Carta Branca concebido para a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, tendo-se aí deixado fotografar pela nossa Mariana Castro. A walshiana Inês N. Lourenço escreveu isto a propósito das imagens captadas pela nossa fotógrafa: “Instantâneos que deixam vislumbrar uma certa postura cinematograficamente solitária e secretamente lúdica”. Lidando com o alcoolismo e um certo amor murcho (no lugar do proverbial “amour fou”), Kaurismäki regressou com um dos seus filmes mais preciosos e tocantes.
Talvez seja surpreendente esta escolha pois, convenhamos, 2024 não foi um ano de fórmulas simples: veja-se o gore fest montado e “implodido” por Coralie Fargeat, a reflexão sobre o estranho mundo contemporâneo levada a cabo por Radu Jude em Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, a intensidade erótica do jogo de ténis jogado pelo trio amoroso de Guadagnino em Challengers e o mastodonte de produção de Coppola e da escala da sua visão ousada sobre um futuro qualquer; o experimentalismo áudio/visual no “lado de lá” dos campos concentração por Jonathan Glazer e o drama formalista do japonês Hamaguchi (um repetente nos nossos tops) acerca do lugar da humanidade na natureza e da natureza na humanidade… Ficam, guardadas na retina, insinuando-se por entre todas estas ousadias – regressamos à palavra, porque, sim, 2024 foi um ano cinematográfico bem “bold” – as mãos firmes e magistrais no âmbito do thriller e do drama de Patricia Mazuy com Bowling Saturne e de dois grandes veteranos do cinema mundial: Clint Eastwood e Marco Bellocchio.
Aos velhos e aos novos, aos clássicos e aos modernos mais ou menos escangalhados, bestas ou bestiais, o nosso brinde e um desejo de óptimas festas!
Beatriz Fernandes
- Kaibutsu (Culpado – Inocente – Monstro, 2023), Hirokazu Kore-eda
- Past Lives (Vidas Passadas, 2023), Celine Song
- Bên trong vỏ kén vàng (No Interior do Casulo Amarelo, 2023), Pham Thien An
- Anatomie d’une chute, Justine Triet
- We Live in Time (Todo o Tempo Que Temos, 2024), John Crowley
- O Mal Não Está Aqui, Ryûsuke Hamaguchi
- The Zone of Interest, Jonathan Glazer
- Grand Tour (2024), Miguel Gomes
- Folhas Caídas, Aki Kaurismäki
- Quand vient l’automne (Quando Chega o Outono, 2024), François Ozon
Na antevisão do exercício de compor uma lista com o conjunto de dez filmes que marcaram o meu 2024, adivinhar-se-iam três cenários imagináveis: (1) a escassez – não conseguir incluir a totalidade dos títulos elegíveis, ora porque se considera que as estreias não vão ao encontro das nossas expetativas e, por isso, não dão corpo às nossas afeições cinematográficas, ora porque a disponibilidade para assistir às mesmas fica aquém do desejável; (2) o excesso – apontar as dez “fitas”, mas ansiar uma outra extensão da lista, que permitisse acolher mais obras; (3) – o equilíbrio – escolher com “conta, peso e medida”, sem cogitar a necessidade de retirar ou juntar nomes. É nesta terceira conjuntura que me situo. Das menções realizadas, evidencio o português Miguel Gomes, com o (justíssimo) filme candidato aos Óscares 2025; a canadiana Celine Song e o vietnamita Pham Thien Na, com as suas (belíssimas) longas-metragens de estreia; e os consagrados cineastas, casos do finlândes Aki Kaurismäki, o francês François Ozon e os japoneses Ryûsuke Hamaguchi e Hirokazu Kore-eda.
A Kore-eda pertence o 1.º lugar, com Culpado – Inocente – Monstro, cuja curta passagem pelas salas de cinema, em Março, passou – parece-me – sem que lhe fosse dirigida a consideração devida. A este propósito, recupero as breves palavras do elogio que lhe dediquei, aqui: na dança que entrelaça a beleza das relações humanas, a disfuncionalidade dos laços familiares, a inocência das crianças, o sabor da liberdade e a inevitabilidade da perda, somos convidados a entrar na sensibilidade, subtileza, contemplação e paciência que emanam da obra de Kore-eda. Ao aceitar esse convite, tornamo-nos parte desse universo, sem jamais desejamos partir.
Bernardo Vaz de Castro
- The Holdovers (Os Excluídos, 2023), Alexander Payne
- La chimera (A Quimera, 2023), Alice Rohrwacher
- Anora, Sean Baker
- Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, Radu Jude
- O Mal Não Está Aqui, Ryûsuke Hamaguchi
- Le procès Goldman (2023), Cédric Kahn
- The Zone of Interest, Jonathan Glazer
- Verbrannte Erde (Terra Queimada, 2024), Thomas Arslan
- Folhas Caídas, Aki Kaurismaki
- Los delincuentes (2023), Rodrigo Moreno
Este ano gostaria de começar pelo exercício inverso, destacando os filmes que deixo de fora deste top. Um top é tal como um plano de cinema, há um dentro e um fora de campo e, por vezes, o fora de campo é igualmente rico e sugestivo. Deixo certas obras de fora, que num exercício mais alargado certamente estariam incluídas, tal como é o caso de Trap (Armadilha, 2024), de M. Night Shyamalan; Bruno Reidal (Bruno Reidal, Confissões de um assassino, 2021), de Vincent Le Port; O Ouro e o Mundo (2023), de Ico Costa, ou ainda o Culpado – Monstro – Inocente, de Hirokazu Kore-eda. Podemos dizer que a distribuição em 2024 manteve uma certa cadência, o que por si só é já um enorme feito. Num país onde quase tudo chega tarde ou não chega [ou então, é escoado para o mundo das plataformas, tal como o Passages (2023), de Ira Sachs – filmes light, para “dispor bem”, no avião, no comboio ou aos bochechos no autocarro, um travelling bibelot num iPad ou num iPhone] ter um ano como este, diz mais do funcionamento do mercado da distribuição do que de uma qualquer excepcionalidade no mundo do cinema (e devo o visionamento de muitos destes filmes ao UCI, que apesar de estar inserido num centro comercial e que poderia dedicar-se unicamente ao dinheiro fácil dos blockbusters, continua a apostar numa programação cuidada, equilibrada e sobretudo atenta ao que melhor se faz). Até porque, mesmo nos piores anos, há sempre um par de filmes extraordinários para ver, mesmo se muitos vejam nessas obras o estertor de uma morte há muito anunciada (e, acrescentaria, fetichizada).
E quanto ao tal dentro de campo, o meu top, apesar de serem obras pouco semelhantes entre si, cada uma toca-me particularmente – quer emocionalmente, quer intelectualmente (por vezes, entrecruzam-se os gestos). Não foi particularmente fácil escolher entre o The Holdovers e o La chimera, no entanto, bastou-me pensar um pouco sobre cada um deles e logo a música do Damien Jurado, Silver Joy, e o plano inicial do carro em direcção à escola numa manhã cinzenta de inverno, com ecos dos anos 70/80 de uma Nova Hollywood ao som de Simon & Garfunkel, sobrepôs-se a qualquer outra imagem (mesmo à imagem que guardo do rosto belo e terno de Josh O’Connor no carro iluminado pela luz do sol ou do plano da cabeça da estátua de mármore no barco, antes de ser atirada borda fora). Além de que o The Holdovers não deixa de ser a grande surpresa do ano, ao contrário do filme da Alice Rohrwacher ou Anora do Sean Baker, ambos cineastas que muito estimo e que acompanho desde a primeira obra. Mas não é só o prazer da descoberta, do inesperado; foi, acima de tudo, o tal eco do passado, de uma certa forma de fazer cinema, de uma fórmula irrepetível (tal como um western ou um noir), que deixou-me absolutamente rendido. Às tantas poderia ser um filme do Sydney Pollack ou do Peter Bogdanovich, onde a candura da história e dos seus personagens é a candura do próprio acto de filmar.
Carlos Alberto Carrilho
- The Zone of Interest, Jonathan Glazer
- Megalopolis, Francis Ford Coppola
- Love Lies Bleeding (Amor em Sangue, 2024), Rose Glass
- MaXXXine (2024), Ti West
- Smile 2 (Sorri 2, 2024), Parker Finn
- In a Violent Nature (Natureza Violenta, 2024), Chris Nash
- Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, Radu Jude
- Alien: Romulus (2024), Fede Alvarez
- The Substance, Coralie Fargeat
- Bowling Saturne, Patricia Mazuy
Outras escolhas: MadS (2024) de David Moreau, I Saw the TV Glow (2024, Queer Lisboa) de Jane Schoenbrun, The Shrouds (2024, LEFFEST) de David Cronenberg, Grand Tour de Miguel Gomes, Mário (2024) de Billy Woodberry, Dahomey (2024) de Mati Diop, Chime (2024) de Kiyoshi Kurosawa, O Mal Não Está Aqui de Ryûsuke Hamaguchi, Longlegs (O Colecionador de Almas, 2024) de Osgood Perkins, Terrifier 3 (2024) de Damien Leone, Terra Queimada de Thomas Arslan, Trap de M. Night Shyamalan, Strange Darling (2023) de JT Mollner, Folhas Caídas de Aki Kaurismäki, Abigail (2024) de Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett, Late Night with the Devil (Conversas com o Diabo, 2023) de Cameron Cairnes e Colin Cairnes, El Vampiro: Two Bloodsucking Tales from Mexico (Powerhouse Films, Blu-ray), The Incredibly Strange Films Of Ray Dennis Steckler (Severin, Blu-ray), The Dungeon Of Andy Milligan (Severin, Blu-ray), The Sensual World of Black Emanuelle (Severin, Blu-ray), Peeping Tom (Criterion, Blu-ray), Chantal Akerman Masterpieces, 1968–1978 (Criterion, Blu-ray), Inside the Mind of Coffin Joe (Arrow Video, Blu-ray), Memento Mori: The Jörg Buttgereit Collection (Arrow Video, Blu-ray).
Carlos Natálio
- O Mal Não Está Aqui, Ryûsuke Hamaguchi
- Folhas Caídas, Aki Kaurismaki
- The Substance, Coralie Fargeat
- Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, Radu Jude
- In a Violent Nature, Chris Nash
- El auge del humano 3 (2023), Eduardo Williams
- Trap, M. Night Shyamalan
- Rapito, Marco Bellocchio
- The Holdovers, Alexander Payne
- Megalopolis, Francis Ford Coppola
Ao olhar para a lista dos dez filmes que resolvi destacar este ano fico apaziguado pelo facto de existir nela uma ideia de diversidade. Como se o cinema, nessa latência estética e política, pudesse ajudar-me a fantasiar acerca de múltiplas possibilidades, no qual a coerência do correto, de uma linha autoral ou temática, de uma disrupção ou confirmação não tivessem lugar como parti pris. Como me dizia há pouco uma realizadora portuguesa, “por vezes estás a ver o filme e acontece o cinema, numa espécie de pequena epifania, que nunca sabemos quando e onde pode surgir”.
Não tendo ficado maravilhado com Gûzen to sôzô (Roda da Fortuna e da Fantasia, 2021), penso que Ryûsuke Hamaguchi, neste seu jeito único de unir os tempos da conversa aos tempos da transformação no espaço e das suas personagens, tem uma dessas pequenas epifanias no final de O Mal Não Está Aqui. Um filme que contorna um lugar fácil de activismo e desloca a política para um espaço bem mais misterioso e denso. Foi também um ano de Kaurismaki que é sempre assim: quando filma agrafa como ninguém um doce pessimismo, uma seriedade ridícula e sobretudo uma homenagem à presença das pessoas como antídoto romântico para uma solidão interior. Folhas Caídas é muito eloquente nesta forma de fazer cinema.
Coralie Fargeat e Demi Moore foram uma boa surpresa. The Substance começa por encenar um conto politizado e algo cartoonesco sobre a pressão da juventude e da vaidade do corpo feminino, num palco que lhe pedia uma certa correção de tom e acaba filmando como Peter Jackson fazia os seus filmes no início da sua carreira na Nova Zelândia com meia dúzia de patacos e muita maluquice. Radu Jude e o seu ritmo frenético já não surpreendem ninguém e esta sua passagem/travelling pela dimensão ridícula dos pequenos poderes na Roménia continuam a não ter par no cinema do país. Se estamos a falar de uma viagem pelos costumes com Jude, já Chris Nash encena em In a Violent Nature uma outra viagem. Uma viagem telúrica de carnificina, como se Lisandro Alonso decidisse filmar um remake de Friday the 13th (Sexta-Feira 13, 1980). Estará este gesto tão longe do que Eduardo Williams fez em Taiwan, Peru e Sri Lanka, com uma câmara 360º em El auge del humano 3? Uma dispersão da narrativa e com ela dos lugares-comuns do humanismo e das suas lógicas produtivas? O terror que casa com a afirmação de uma outra forma de existância: o cinema é feito destas horizontalidades.
2024 foi também o regresso aos bons filmes de Night M. Shyamalan depois de The Visit (A Visita, 2015). Em Trap, as armadilhas do realizador tornam-se mais explícitas e a lógica de manipulação hitchcockiana parece querer virar-se contra si própria, com esta tensão que Josh Hartnett incorpora entre o pai e o assassino, o trauma e o crime. Da diversidade do ano surge ainda o classicismo; de Rapito de Marco Bellocchio um cineasta que, temíamos, tivesse perdido a mão; da comédia dramática de Natal, The Holdovers, com Alexander Payne, a fazer de Kaurismaki americano; e ainda do grande ovni do ano, Coppola que, com Megalopolis, parece estar à vez no pior regresso de Terrence Mallick e numa mundivisão godardiana onde o apocalipse romano-ocidental veste Prada e dourados.
Ainda por ver ficaram filmes importantes: a Palma de Ouro de Sean Baker, a Payal Kapadia, a Patricia Mazuy, o Miguel Gomes e os filmes de Rodrigo Moreno, Zhang Lu, Nuri Bilge Ceylan ou Philippe Garrel. Uma palavra ainda para o almodovariano e divertido Estamos no Ar, de Diogo Costa Amarante, que, ficando à porta do meu top, foi o filme português que mais gostei este ano.
Clara Jost
- Dahomey, Mati Diop
- Here (Aqui, 2023), Bas Devos
- Por ti, Portugal, Eu juro! (2024), Sofia da Palma Rodrigues, Diogo Cardoso
- La chimera, Alice Rochwarer
As discussões intensas com lados cada vez mais opostos que caracterizam os nossos tempos são fundamentais. No entanto, tornam difícil escutar o outro lado e fazem parecer que as coisas só podem ser de uma forma, ou o seu absoluto contrário. Neste contexto, achei Dahomey, de Mati Diop, tal como Por Ti, Portugal, Eu Juro!, de Sofia da Palma Rodrigues e Diogo Cardoso, filmes importantes por participarem nas discussões com mais perguntas do que respostas, abrindo-nos os olhos à complexidade dos assuntos e a pontos de vista muitas vezes ocultados. Ao mesmo tempo, Here, de Bas Devos, foca-nos no aqui e agora, na natureza ameaçada, e faz-nos valorizar o tempo que temos. Só aqui e agora podemos ter calma para avaliar a situação. Com uma realidade tão complexa e fascinante, o meu interesse pela ficção foi desvanecendo ao longo dos anos. No entanto, este ano, tive uma experiência em sala que me lembrou os tempos em que ia à cinemateca diariamente ver filmes – A Quimera, de Alice Rohrwacher, deu-me um pouco de esperança em relação à ficção.
Daniela Rôla
- The Zone of Interest, Jonathan Glazer
- Quando Chega o Outono, François Ozon
- The Iron Claw (2023), Sean Durkin
- Anora, Sean Baker
- Anatomie d’une chute, Justine Triet
- Challengers, Luca Guadagnino
- La passion de Dodin Bouffant (O Sabor da Vida, 2023), Tran Anh Hung
- Das Lehrerzimmer (A Sala de Professores, 2023), Ilker Çatak
- The Holdovers, Alexander Payne
- Blink Twice (Um Sinal Secreto, 2024), Zoë Kravitz
O ano de 2024 aproximava-se do fim quando descobrimos que, afinal, uma boa equipa de futebol precisa mesmo de um bom treinador para jogar bem. Nos filmes estreados em 2024, houve, felizmente, muito mérito de jogador e muito mérito de treinador e, também, aquele brilho especial quando os dois se juntam. Fica ainda a sensação de retorno, com novos olhos, a um lugar familiar, feito daquelas categorias fílmicas dos tempos da TV Guia, do melodrama, do policial, da acção/aventura. E outros casos existem de filmes que procuraram novas categorizações, como sucede na “viagem a Oz sem feiticeiro” que é The Sweet East (A Doce Costa Leste, 2023). Uma nota quanto a The Room Next Door (O Quarto ao Lado, 2024): estaria muito bem classificado na lista deste ano, se houvesse mais dos últimos dois terços de filme e menos do primeiro terço. Já Bowling Saturne padece do mesmo mal em sentido inverso, perdendo o seu fulgor a meio do caminho. Outros títulos com jogadores em alta no Transfermarkt: The Apprentice (The Apprentice – A História de Trump, 2024), Hors-saison (A Vida Entre Nós, 2023) e Conclave (2024). Menções honrosas finais para Ryuichi Sakamoto | Opus (2023) e La chimera.
Duarte Mata
- Joker: Folie à Deux (Joker: Loucura a Dois, 2024), Todd Phillips
- Juror #2 (2024), Clint Eastwood
- The Substance, Coralie Fargeat
- Conclave (2024), Edward Berger
- Le Procès Goldman, Cédric Kahn
- Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, Radu Jude
- Le Grand Chariot (Retrato de Família com Teatro de Marionetas, 2023), Philippe Garrel
- Megalopolis, Francis Ford Coppola
- Kuru Otlar Üstüne (As Ervas Secas, 2023), Nuri Bylge Ceylan
- Hit Man (Assassino Profissional, 2023), Richard Linklater
2024 foi, para mim, um ano de felizes reencontros com grandes veteranos, fosse esse reencontro caracterizado pelo visionarismo megalómano (Coppola), pela provocação filosófica (Eastwood) ou pela continuada depuração estética (Garrel). Adicionalmente, foi um ano para continuar a acompanhar o sempre interessante trabalho das vozes relativamente mais novas que, gradualmente, vão subindo aos lugares cimeiros do cinema contemporâneo (Jude, Ceylan, Linklater). Para além disso, foi um ano de inesperadas surpresas, viessem elas de cineastas desconhecidos (Fargeat, com o seu duríssimo retrato alegórico da condição feminina na indústria do entretenimento), doutros por quem pouco se tinha notado (Berger, com a sua dissecação da Igreja enquanto arena política digladiada por facções progressistas e conservadoras) ou até daqueles por quem dificilmente se esperaria um grande filme (e que grande filme sobre o uso da palavra é o de Cédric Kahn).
E, finalmente, 2024 foi também o ano desse realizador tão difícil de colocar em qualquer caixa, capaz do muito mau e do muito bom, simultaneamente tarefeiro de domingo à tarde e digníssimo discípulo da Nova Hollywood, chamado Todd Phillips. Não tenho presente alguma vez uma sequela ter sido a desconstrução total das ideias que o filme original levantava, espécie de resposta cinematográfica à filosofia que constituía o alicerce do anterior. Assim sendo, se Joker (2019) olhava para a personagem epónima como uma vítima do fracasso político-institucional americano, o segundo mostra o protagonista a assumir a cabal responsabilidade dos bárbaros actos cometidos, enjeitando qualquer chance de enaltecimento simbólico anárquico ou de representação de ansiedade social colectiva de que vinha a ser alvo (no cinema e na realidade). Claro que a rejeição de boa parte da crítica e público, fãs do primeiro filme, era inevitável. O que não interessa para nada. A História do cinema contém uma extensa lista de obras-primas menosprezadas cujo fel o tempo se encarregou de levar. Se me for permitida a falta de humildade, é da minha firme convicção que essa lista ganhou uma nova entrada este ano.
Fernando Guerreiro
- Alien: Romulus, Fede Alvarez
- Culpado-Inocente-Monstro, Hirokazu Koreeda
- Dahomey, Mati Diop
- The Sweet East, Sean Price Williams
- Eureka (2023), Lisandro Alonso
- La bête dans la jungle (A Fera na Selva, 2023), Patric Chiha
- Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, Radu Jude
- Quando Chega o Outono, François Ozon
- La chimera, Alice Roherwacher
- Vincent doit mourir (Vincent Deve Morrer, 2023), Stépan Castang
Cheia de lacunas – filmes que não consegui ver ou que não posso incluir (MaXXXine de Ti West e Bird de Andrea Arnold são dois exemplos) -nesta lista (ordenada por entrada alfabética dos títulos em português, ressalvando o artigo) procura corresponder ao que hoje mais me interessa: a capacidade metamórfica de transformação (mutação) das e nas imagens e o modo como, por elas, se engrena nos grãos do real e se pode participar na grande operação metabólica da mise en scène e acção do mundo.
Filipe Furtado
- Juror #2, Clint Eastwood
- Folhas Caídas, Aki Kaurismaki
- Trap, M. Night Shyamalan
- Le Grand Chariot, Philipe Garrel
- Terra Queimada, Thomas Arslan
- Ferrari (2023), Michael Mann
- O Mal Não Esta Aqui, Ryûsuke Hamaguchi
- Bai ta zhi guang (A Torre Sem Sombra, 2023), Lu Zhang
- Bowling Saturne, Patricia Mazuy
- Rapito, Marco Bellocchio
Faço esta pequena contribuição aqui do Brasil, marcada pelos ruídos da distância, espero que nada não tenha me passado despercebido. É diferente fazer um exercício destes do lado de cá e faz muitos anos que não elaboro uma lista oficial balizada pelo circuito comercial. As listas que publico todos os anos no meu blogue pessoal desde 2008 baseiam-se no que vi, independentemente de como, o que me dá uma liberdade maior para com as vicissitudes do mercado, que sabemos estar sujeito a caprichos e critérios por vezes cruéis. Como podemos observar pela decisão da Warner Bros de lançar o filme de Clint Eastwood, um dos melhores que ele realizou nos últimos quinze anos, diretamente no seu serviço de streaming. Se nem Eastwood, consegue escapar a esta lógica, todos os demais realizadores estarão abandonados a própria sorte. O cinema parece-me cada vez mais frágil e sofrendo sobre este peso, o que vale tanto para o “cinemão” como para os filmes de festival (que não passam de uma feira de negócios onde esta mesma lógica é performada numa chave menor). A despeito de tudo isso, fico bastante satisfeito com esta lista de dez filmes, pois fica a sensação de que o cinema ainda acontece com grande força, pelo menos nas suas exceções.
Francisco Noronha
- Horizon: An American Saga – Chapter 1 (Horizon: Uma Saga Americana – Capítulo 1, 2024), Kevin Costner
- Poor Things (Pobres Criaturas, 2023), Yorgos Lanthimos
- The Zone of Interest, Jonathan Glazer
- Megalopolis, Francis Ford Coppola
- Quando Chega o Outono, François Ozon
- Bowling Saturne, Patricia Mazuy
- Hit Man, Richard Linklater
- The Sweet East, Sean Price Williams
- The Iron Claw, Sean Durkin
- Challengers, Luca Guadagnino
Walshies (versão local dos Razzies): Vidas Passadas, The Substance, O Coleccionador de Almas, A Vida Entre Nós, Dias Perfeitos (haja ainda alguém com a suprema coragem de fazer um melodrama não com um, mas vários planos das teclas de um piano a tocarem sozinhas!).
Quando o ano já ia adiantado, demos por nós a constatar que as preferências pendiam todas para filmes americanos (alguém viu Assassino Profissional, por exemplo? Que singela e divertida pérola!). A suprema infâmia, quelle horreur! Ora, findas as contagens, o panorama quase não se alterou, com excepção para dois pequenos-grandes filmes (se bem que The Zone of Interest tenha mão britânica). Quando Chega o Outono: impressionante como com três ou quatro personagens apenas, três ou quatro décors, o inevitável Ozon (esse tipo de realizador médio, pontualmente excepcional, que hoje constitui uma espécie praticamente extinta) saca um filme cheio de nuances e ambiguidades (ou seja, um completo anacronismo neste tempo de histriónicas certezas). Belíssimo e violento filme sobre a maternidade e a culpa, a mulher e o corpo, sim (e é pena que Ozon não se tenha contido na sequência inicial, com a referência, redundante, a Maria Madalena); mas nos antípodas do panfletarismo fast-food da arte “politizada” (muitas aspas) e identitária que enjoativamente domina os nossos dias. Disso é exemplo gritante The Substance, Barbie-gore sem um pingo de substância que não a sua superficialíssima “mensagem empoderadora” – o rei, de facto, vai nu e não parece haver maneira de se engripar. Como objecto série B, passaria bem (foi o caso de Love Lies Bleeding); como filme solene, sério e autoritário no seu discurso bem-pensante e na sua estilização audiovisual, é uma abjecção (fosse Lanthimos, e não uma mulher, a realizar e uma certa crítica teria destruído o filme, começando pela inexistência de uma única personagem digna desse nome, passando pelo oportunismo e maniqueísmo do argumento e terminando nas grandes angulares exibicionistas e demais truques “Vejam-do-que-sou-capaz-de-fazer-com-a-minha-câmara”). Enfim, é o Cronenberg (e demais retalhos que compõem esta confrangedora manta) que o público social media merece. O mesmo que, não tendo tempo nem paciência para um literato filme de um Rohmer (mas para quê quando se pode partilhar uma story com uma cena de um filme que nunca se viu nem se vai ver? Time is validation!), rejubila com uma coisa como Vidas Passadas (faça-se novo exercício: imagine-se este filme sem o factor “asiático” da diversidade, de resto perfeitamente subdesenvolvido, como tudo neste arremedo de cinema). Num filme em que duas personagens são escritores, e no qual alguém alude aos seus “gostos” em literatura e cinema, não há um único, mínimo que seja, desenvolvimento sobre o que é que pensam, sentem, reflectem, meditam – sobre o que é que, voilà, escrevem – e que esteja remotamente relacionado com os livros saídos de uma qualquer e mui literata mão invisível. Sintomaticamente, fica tudo à mais rasa superfície: uma lombada onde se lê “Macbeth” na mesa da “escritora”; uma “residência artística” cujo único facto conhecível é o de gerar encontros românticos; um livro intitulado “Boner” que o “escritor”, o marido, assina numa… sessão de fotógrafos. São – diz a sinopse – escritores, mas podiam ser engenheiros, talhantes, advogados, carteiros ou influencers. Estranha matemática, esta: se num filme se discutem directa e aprofundadamente livros e ideias (espécie cada vez mais rara e de que nem somos particulares apreciadores), ele corre o risco de ser “pretensioso”; quando a lombada é bastante para o efeito pretendido (pessoas “inteligentes”, “cultas”, num ambiente “intelectual”), o risco é o da aclamação. Está encontrado o novo Aftersun (2022), o triunfo do vazio.
Mas dizíamos…
Bowling Saturne, com o seu protagonista-modèle e o bressoniano vento que souffle où il veut (o lenço esvoaçando na porta do carro, o seu toque no regaço como aconchego maternal, essa a verdadeira carência, e não o sexo, deste pobre diabo), deixou-nos, na sua primeira hora, extasiados como há muito não acontecia. O modo, porém, como o filme se resolve parece resultado de uma abrupta e inusitada falta de imaginação, deixando elementos de interesse pelo caminho e explicitando desnecessariamente outros há muito consolidados. É o caso clamoroso da ilustração, no pior e literal sentido possível, do paralelo entre predação sexual e caça animal, para mais dada através de uma gigantesca projecção em tela de um estabelecimento de bowling decadente e até esse momento carente de qualquer sofisticação tecnológica…
Um desejo e um lamento finais. O primeiro é para que o próximo capítulo de Horizon: An American Saga tenha estreia em sala (à data, as notícias são de que, após a estreia em Veneza, terá sido relegado sine die para o streaming), com expectativa para ver como Costner irá tratar das questões índia e negra. O lamento é acerca de Juror #2 (unicamente disponível no streaming), que não tivemos oportunidade de visionar a tempo do balanço e que, dizem as boas línguas, insiste na funda complexidade de Richard Jewell (O Caso de Richard Jewell, 2019) (quanto a nós, um dos grandes filmes políticos do século XXI). Em qualquer caso – Lamento #2.1 –, o último fruto de Clint Eastwood nunca entraria nestas contas, pois há muito que nos mantemos fiel ao mesmo critério: apenas estreias em sala, o lugar a que os filmes e o espectador pertencem. E não é que “Only in cinemas” se tornou a nova parangona dos distribuidores?…
A melhor cena que vimos em 2024 (ou terá sido esta? A natureza do mal explicada a um filho? Mas e o arco de Chris Moltisanti?…) é bela de várias maneiras e eu proponho uma: ouvir apenas o seu som. Os uivos, as respirações, as palavras, a água. A dor. “Come on, baby… You’re all right, baby? You’re all right, baby… You’re all right…”.
Inês N. Lourenço
- Folhas Caídas, Aki Kaurismäki
- All We Imagine as Light (Tudo o Que Imaginamos como Luz, 2024), Payal Kapadia
- Rapito, Marco Bellocchio
- Joker: Folie À Deux, Todd Philips
- La bête (A Besta, 2023), Bertrand Bonello
- The Room Next Door, Pedro Almodóvar
- O Mal Não Está Aqui, Ryusuke Hamaguchi
- Sie sagt. Er sagt. (Troca de Acusações, 2024), Matti Geschonneck
- The Holdovers, Alexander Payne
- Juror #2, Clint Eastwood
Ficam à porta All of Us Strangers (Desconhecidos, 2023), Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, Terra Queimada e A Torre Sem Sombra. Felicito o (não) estado da comédia tirando o chapéu a Beetlejuice Beetlejuice (2024), Daaaaaalí! (2023) e Hit Man, filmes muito diferentes entre si mas cada um com o seu loop glorioso. E não poderia deixar de referir que 2024 me pareceu um ano de belos “filmes de risco”, a começar por dois que contemplo no meu top – Joker: Folie à Deux e La bête – e a acabar em Sasquatch Sunset (O Crepúsculo do Pé Grande, 2024), estreado há pouco, sem esquecer Emilia Pérez (2024), Megalopolis e The Substance. Este último não me convenceu particularmente, mas surge numa linhagem de objetos estranhos que desafiaram o estado da crítica: aí, os louros vão mesmo para Joker e Megalopolis.
João Araújo
- Folhas Caídas, Aki Kaurismäki
- O Mal Não Está Aqui, Ryusuke Hamaguchi
- Past Lives, Celine Song
- As Ervas Secas, Nuri Bilge Ceylan
- The Zone of Interest, Jonathan Glazer
- La chimera, Alice Rohrwacher
- No Other Land (2024), Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal, Rachel Szor
- Anora, Sean Baker
- Bowling Saturne, Patricia Mazuy
- All of Us Strangers, Andrew Haigh
Menções honrosas: No Interior do Casulo Amarelo, de Thien An Pham, A Torre Sem Sombra, de Zhang Lu, Anatomie d’une chute, de Justine Triet, Baan (2023), de Leonor Teles, La bête, de Bertrand Bonello, Civil War (Guerra Civil, 2024), de Alex Garland, Furiosa: A Mad Max Saga (2024), de George Miller, Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, de Radu Jude, Dahomey, de Mati Diop, Un couple (2022), de Frederick Wiseman, e A Flor do Buriti (2023), de Renée Nader Messora e João Salaviza.
Um desabafo: o que leva uma distribuidora a estrear um filme que potencialmente pode ser dos melhores do ano a 19 de Dezembro, já com estas listas fechadas, sabotando assim o próprio filme? É algo tão recorrente como inexplicável: o ano passado, por exemplo, o novo filme de Nuri Bilge Ceylan estreou dia 28 de Dezembro, e Perfect Days (2023) dia 14 de Dezembro. Porquê guardar para esta altura do ano estes filmes? Para não referir obras como All of Us Strangers, ou o novo de Eastwood, que nem sequer passam pelas salas (este último estreia 20 de Dezembro, para completar o pleno), ou filmes que estreiam em Berlim e Cannes e depois em Portugal nove, dez meses depois… Aproveitemos então para elogiar o trabalho da distribuidora The Stone and The Plot, por nos dar a ver em sala filmes como Un Couple, Bowling Saturne e Verbrannte Erde, e dar os parabéns ao Cinema Trindade, essa segunda casa, por manter em exibição durante um ano (!) Perfect Days, de Wim Wenders. Um nota de curiosidade: depois de Aftersun em 2023, este foi ainda um ano marcado por retratos emotivos da relação com a memória de pai(s) desaparecidos, figuras fantasmas que assombram o presente, como em All of Us Strangers e A Torre Sem Sombra de Zhang Lu, ambos sob o pretexto do despontar de uma relação amorosa, como forma de enfrentar o peso fugidio do passado perante o presente, temas também abordados em La bête e Baan, mas que domina o belíssimo filme de Alice Rohrwacher, La chimera, outro filme repleto de fantasmas vivos, e o emocionante Past Lives de Celine Song, sob o espectro das escolhas, desses fantasmas e fantasias invocados pela passagem irreparável do tempo. Finalmente, Aki Kaurismäki regressa à sua trilogia do proletariado com um novo tomo, para encontrar precisamente na completa actualidade e relevância desta história sobre a classe operária, o desamparo das suas personagens e a imutabilidade da sua condição, a absoluta intemporalidade do seu cinema, e nos relembrar que o caminho para a esperança também pode passar por uma sala de cinema.
João Lameira
- Challengers, Luca Guadagnino
- Ferrari, Michael Mann
- Terra Queimada, Thomas Arslan
- The Holdovers, Alexander Payne
- Onde Está o Pessoa? (2023), Leonor Areal
- Le procès Goldman, Cédric Kahn
- O Bêbado (2023), André Marques
- Bowling Saturne, Patricia Mazuy
- All of Us Strangers, Andrew Haigh
- Un couple, Frederick Wiseman
2024 foi um ano mais ou menos.
O menos: apesar de ter feito um esforço para ir mais ao cinema, tive dificuldades em completar esta lista. Aquelas últimas escolhas, foram um tanto forçadas (apesar de simpatizar com elas). Fica a ressalva de que não vi alguns filmes que potencialmente poderiam entrar.
O mais: Dos cinco primeiros da lista, gosto mesmo muito. A ordem não é exactamente aleatória, mas, se a virasse ao contrário, não me chatearia (e Terra Queimada ficaria no mesmo sítio). E há muito tempo que não tinha tantas dúvidas sobre o meu filme do ano: acabei por trocar Ferrari por Challengers à última.
Luís Mendonça
- The Zone of Interest, Jonathan Glazer
- Smile 2, Parker Finn
- Trap, M. Night Shyamalan
- Joker: Folie à Deux, Todd Phillips
- La passion de Dodin Bouffant, Anh Hung Tran
- The Substance, Coralie Fargeat
- Challengers, Luca Guadagnino
- Grand Tour, Miguel Gomes
- Un couple, Frederick Wiseman
- A Flor do Buriti, Renée Nader Messora & João Salaviza
Actos de extermínio (iminente) e de devoração (eminente). O ano dividiu-se muito entre pólos extremos de chegada ao outro: corpos a implodirem por via de inúmeras convulsões – e encenações – da mente ou a canibalizarem-se mutuamente seja em linha recta, um seguindo os passos do outro, seja frente-a-frente, como num jogo de ténis. Seja correspondendo-se ou, numa dedicação amorosa extremosa, cozinhando para “o mais que tudo”. E entre os extermínios do lugar 1 e do lugar 10, há um filme em que a armadilha está no jogo que se estabelece com o espectador e com o interior do seu protagonista: entre um competentíssimo pai e um competentíssimo serial killer.
Para concretizar mais este balanço, destaco, então, Trap, de M. Night Shyamalan, pois a armadilha no filme é ultrapassada pela armadilha do filme: tememos mais pela “morte da figura do pai” do que por eventuais actos de violência que este tenha guardados na manga. É um Norman Bates contemporâneo em diálogo com a saga “of the mind” da estrela pop de Smile 2 – estamos também aqui, na imensa experiência cinética de Parker Finn (habemus cineasta!), imersos na viscosa cultura da celebridade (a mesma que é hiperbolizada até ao body horror mais “peter jacksoniano” em The Substance), mas nesta sequela do outrossim brilhante Smile (2022) tudo é mente e tudo é corpo, começando pela câmara animal e maquinal, desenhando bruscas panorâmicas (Michael Snow, és tu?) como que buscando uma fuga qualquer ao real todo ele já demasiado monstruoso, quer dizer, todo ele consumido, à flor da pele, pela depressão.
Infelizmente, acabei por não ver: a Palma de Ouro de Sean Baker, o François Ozon, a Payal Kapadia, a Patricia Mazuy, o Hamaguchi e o mais recente (e derradeiro?) Clint Eastwood (hélas, estreado em streaming). Este último poderá muito bem ter o condão de fazer o que me fez a mim Maestro (2023), de Bradley Cooper, no ano passado, visto a tarde e a más horas: se pudesse fazer o tempo andar para trás, tê-lo-ia considerado “o filme de 2023” e, se pudesse fazer dobrar as regras do top deste ano, tê-lo-ia considerado à mesma “o melhor filme de 2024”.
Luiz Soares Júnior
- Bowling Saturne, Patricia Mazuy
- Eureka, Lisandro Alonso
- O Mal Não Está Aqui, Ryûsuke Hamaguchi
- Trap, M. Night Shyamalan
- Priscilla (2023), Sofia Coppola
- La bête, Bertrand Bonello
- The Zone of Interest, Jonathan Glazer
- Grand Tour, Miguel Gomes
- Le procès Goldman, Cédric Kahn
- Folhas Caídas, Aki Kaurismäki
Fico feliz pela lista de melhores de 2024 me dar a chance de emplacar o filme da Mazuy em primeiro lugar; é um exercício de género de crueldade ímpar; crueldade como lucidez do neo-classicismo, delineador de caracteres e de cenários elegantemente descritos: o pano de fundo ataráxico, impassível para a monstruosidade em Cena encorpa seu númen niilista, num contraste revelador a que nenhum expressionista jamais fez jus: a causa ecológica, que espelha em dimensão ontológica a caça do homem pelo homem do psicótico Armand, revelada com ethos dantesco na caçada filmada perto do final; e crueldade como aprofundamento do demoníaco, das artimanhas do id, obrigado a enfrentar o mundo que o cinema, em seu realismo de base infra-estrutural, necessariamente tem de assumir, mas isto sem jamais dissipar a escuridão de suas origens: o uso assombrado do espaço.
Diante do panorama cada vez menos auspicioso de filmes dignos da grande tradição crítica, obras como Bowling e o último Hamaguchi me acalentam uma esperança que consiste essencialmente em ser cooptado à primeira vista pela afasia da fascinação, e em um momento ulterior e decisivo adquirir resistência a ela; esta é talvez, em tempos anencéfalos em que a inteligência conhece opróbrios, nossa mais eminente função: em um segundo instante dialético, resistir à fascinação, à cooptação elegíaca da sala de cinema como experiência regressiva; o crítico epocalmente adequado é aquele que destrói a bolha amniótica da percepção fascinada, porque aspira à emergência do conhecimento, mas também à presentificação do feeling do espectador; em um outro movimento, acreditamos ainda num horizonte messiânico para a arte do cinema, esta que se devidamente alçada ao sumsum corda de uma vidência integral ( do campo e do extracampo, por exemplo) vai nos permitir que a experiência e a teoria suscitadas por um grande filme possam abrir uma clareira de Logos e de dom revelador no cotidiano, hoje contaminado pelo fetichismo narcisista de analfabetos fonéticos e etcs, como os youtubers, influencers e outras aberrações.
Sugiro para o próximo ano uma lista em negativo, uma lista que estabeleça um paradigma de filmes que jamais vão poder aspirar a habitar uma lista de melhores, de filmes da sarjeta e do bueiro; é só uma ideia, talvez alimentada pelo desalento da minha percepção atual, mas que talvez sirva, como o mecanismo da vacina, como um meio ativo para a criação de anticorpos em nossos corpus flaubertianos de eleições e de excrescências, como parodicamente nos ensinaram as coletâneas tardias de Bouvard e Pécuchet.
Paulo Cunha
- Estamos no Ar, Diogo Costa Amarante
- A Flor do Buriti, Renée Nader Messora & João Salaviza
- Anatomie d’une chute, Justine Triet
- Past Lives, Celine Song
- Grand Tour, Miguel Gomes
- Megalopolis, Francis Ford Coppola
- Manga d’Terra (2023), Basil da Cunha
- Bowling Saturne, Patricia Mazuy
- Challengers, Luca Guadagnino
- Furiosa: A Mad Max Saga, George Miller
Esta lista foi elaborada por fases: numa primeira, de entre os filmes elegíveis, registei numa lista todos os que mais gostei; de seguida, tratei de ver três ou quatro cujas estreias me escaparam durante o ano; de uma lista intermédia com 17 filmes, tratei de eliminar sete; finalmente, pensava eu, ordenei os dez filmes finais, como foi solicitado; mas, umas horas mais tarde, pensei melhor e decidi reordenar a lista, que rapidamente enviei para evitar novas reordenações. Dos dez filmes da lista final, vi sete em sala, 2 na sala de casa e um durante uma viagem de avião. Dos sete em sala, três foram visionados em festivais e quatro em sessões cineclubistas. Apenas revi um dos dez finalistas, o que ficou em primeiro lugar na lista, e talvez isso tenha sido determinante (ou não…) para ele estar a ocupar essa posição.
A maioria dos filmes que vi em sala neste ano não são elegíveis para estas listas. Ano após ano, tenho reparado que vejo os filmes cada vez mais desfasados das suas estreias comerciais, várias vezes com alguns meses de diferença. Também reparei que começo a esquecer-me de muitos filmes que vi recentemente e tenho menos paciência para fazer listas…
Ricardo Gross
- All of Us Strangers, Andrew Haigh
- All We Imagine as Light, Payal Kapadia
- Hors-saison, Stéphane Brizé
- Anora, Sean Baker
- La bête, Bertrand Bonello
- Folhas Caídas, Aki Kaurismäki
- Bowling Saturne, Patricia Mazuy
- Rien à foutre (Geração Low-Cost, 2021), Julie Lecoustre e Emmanuel Marre
- Emilia Pérez, Jacques Audiard
- O Mal Não Está Aqui, Ryusuke Hamaguchi
Fechei a minha lista a 2 de Dezembro. Ficaram por ver o Ozon, o Almodóvar, o Eastwood (que, desgraçadamente, não indo às salas portuguesas tratarei de apanhar mal saia em DVD). Quando percorri o calendário de filmes estreados no último ano, partia com uma única certeza. A lista seria encabeçada por um título que começava pela palavra “All”. É sempre impressionante ver o acumular de filmes que não nos dizem nada descarregados todas as semanas. Não lhes chamaria de lixo por respeito a quem neles trabalhou, mas são produtos descartáveis que nem servem para preencher duas horas do meu tempo, até quando se instala uma certa saudade de regressar à sala de cinema. Terminei a pesquisa com o exacto número de dez escolhas, que hierarquizei pelo efeito de memória retroactiva e prospectiva (quem nunca especulou com a importância futura que certos filmes terão na sua vida que manifeste essa natureza de excepção).
Ricardo Vieira Lisboa
- O Mal Não Está Aqui, Ryusuke Hamaguchi
- La bête, Bertrand Bonello
- Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, Radu Jude
- The Palace (Hotel Palace, 2023), Roman Polanski
- A Torre Sem Sombra, Lu Zhang
- Estamos no Ar, Diogo Costa Amarante
- Smile 2, Parker Finn
- Anatomie d’une chute, Justine Triet
- Challengers, Luca Guadagnino
- Trap, M. Night Shyamalan
Para quem tem como obrigação laboral ver filmes de manhã à noite, é sempre bom ver mais um filme antes de deitar. Filmes, filmes, filmes. Se tivesse uma conta no Letterbox – que não tenho e, por isso mesmo, desaconselho – creio que contabilizaria perto de mil filmes vistos todos os anos (entre curtas e longas-metragens – processos de seleção para festival, visionamentos técnicos, pesquisa histórica, etc.). Há, naturalmente, uma dessensibilização, uma automatização do olhar, uma forma de ver que, na verdade, não vê, tresvê. E, no entanto, no meio de tantos links de vimeo, youtube, pirataria, filmin e demais plataformas, eis que surge o prazer de me sentar numa sala comercial e descansar a vista dos filmes com um pouco de cinema.
Da lista que aqui apresento, só houve um filme que não vi em sala – um filme que vi “na sala” lá de casa, no televisor. E vi, quase todos, em sessões comerciais (pagando honrosamente o meu ingresso), ora em estabelecimentos chiques e respeitáveis com uma plateia cuja idade média ronda os 60 anos, ora entre pipocas e refringentes derramados, no multiplex peganhento mais próximo. Acho que é justamente o borborinho (os sussurros dos namorados, as piadas de adolescentes, os telefones que tocam, as pessoas que se aborrecem e suspiram ou dormem) que transforma os filmes em cinema. Isso, e a relação concentracionária da sala (onde o telefone é colocado em silêncio) com a escala que se estabelece entre as primeiras filas e o ecrã. Gosto de me sentar à frente, de mergulhar nas imagens e ficar envolto pelo som dos outros espectadores, que não vejo, mas persinto. E, nos melhores casos, ser engolido pelo filme e – aí sim – abstrair-me de tudo, do espaço, do contexto, dos outros, de mim.
Nada disse sobre os filmes desta lista. Nada direi. Quero apenas acrescentar que, em todos e cada um deles, o prazer do confronto se fez sentir. Em cada um dos casos, a experiência do visionamento construi-se como uma contenda em que, invariavelmente, me dei por vencido. Talvez esteja aí a perversão da cinefilia: lutar com os filmes para, no fim, nos deliciarmos com a derrota.
Samuel Andrade
- Megalopolis, Francis Ford Coppola
- The Zone of Interest, Jonathan Glazer
- Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, Radu Jude
- Folhas Caídas, Aki Kaurismäki
- O Mal Não Está Aqui, Ryusuke Hamaguchi
- La chimera, Alice Rohrwacher
- All of Us Strangers, Andrew Haigh
- La bête, Bertrand Bonello
- Manga d’Terra, Basil da Cunha
- Longlegs, Osgood Perkins
Por ordem de estreia comercial no nosso país, eis mais dez títulos que ficaram na memória: Ferrari, de Michael Mann; Los delincuentes (Os Delinquentes, 2023), de Rodrigo Moreno; Anatomie d’une chute de Justine Triet; Challengers, de Luca Guadagnino; Daaaaaali!, de Quentin Dupieux; The Bikeriders (2024), de Jeff Nichols; Joker: Folie à Deux, de Todd Phillips; Des Teufels Bad (O Banho do Diabo, 2024), de Veronika Franz e Severin Fiala; Late Night with the Devil (Conversas Com o Diabo, 2024), de Cameron Cairnes e Colin Cairnes; e C’est pas moi (Não Sou Eu, 2024), de Leos Carax.
Sérgio Alpendre
- Rapito, Marco Bellochio
- Folhas Caídas, Aki Kaurismäki
- The Room Next Door, Pedro Almodóvar
- Juror #2, Clint Eastwood
- Ferrari, Michael Mann
- Trap, M. Night Shyamalan
- Past Lives, Celina Song
- Anatomie d’une chute, Justine Triet
- Here, Bas Devos
- La passion de Dodin Bouffant, Anh Hung Tran
2024 foi mais um ano de domínio dos cineastas veteranos. Os cinco primeiros filmes são de cineastas que passaram (às vezes bastante) dos 60 anos. Não por acaso, são os filmes que souberam voltar ao passado para trazer algo novo. Bellocchio une modernismo e classicismo como tem feito desde L’ora di religione (2002), no retrato de um país fundado em base tríplice: história, família, religião. Kaurismaki volta a Chaplin para depurar seu cinema e nos encantar com uma simples história de amor. Almodóvar investiga a finitude e a inadequação aos novos tempos. Clint volta a Lang para mostrar como a culpa sempre retorna. Por fim, Mann volta à melhor forma com uma cinebiografia mal compreendida por muitos cinéfilos (pelo menos aqui no Brasil). Esses cinco filmes (principalmente os quatro primeiros) mostram um nível a que o cinema chegou raras vezes nos últimos anos. Que outro ano recente nos deu quatro obras dessa qualidade, cuja ordem de colocação na lista foi meramente circunstancial?
Susana Bessa
- All We Imagine as Light, Payal Kapadia
- Los delincuentes, Rodrigo Moreno
- No Other Land, Yuval Abraham, Basel Adra, Rachel Szor, Hamdan Ballal
- O Mal Não Existe Aqui, Ryusuke Hamaguchi
- Here, Bas Devos
- El Auge del Humano 3 , Eduardo Williams
- No Interior do Casulo Amarelo, Thien An Pham
- All of Us Strangers, Andrew Haigh
- Dahomey, Mati Diop
- A Sala de Professores, İlker Çatak
As listas de final de ano são attentional real estate for the click-hungry (Elena Gorfinkel). E esse sentimento cresce com o passar dos anos. Ainda assim, que outra forma há de confirmar as memórias cinemáticas mais poderosas do ano? Amante de cinema lento, talvez por ser a forma mais rápida e intensa de viver dentro de um filme, passei o ano à procura de filmes nos quais adormecer, onde o sono me acordaria para um reino sensorial de superfícies ardentes. Esta lista de filmes estreados reflectem esse tocar, em torno do poema dilatado, da prova documental ou do filme-aventura.
O ano começou com Rodrigo Moreno, que nos falou da nossa prisão – “toda a gente pensa que está livre, mas depois são esses que estão sempre a fazer refresh nas páginas da web”, e acabou com um jovem casal na Bombaim de Payal Kapadia a retirar os corações pelas mangas para os oferecerem um ao outro, surpreendidos com “a forma mais natural de estar”. Pelo caminho, Kira Muratova foi redescoberta no ecrã do cinema, dois filmes apaixonados pelo néon luciferiano da criminalidade e malignidade humanas (re)introduzem Thomas Arslan e Patricia Mazuy aos espectadores, os pulsantes La Chimera, Love Lies Bleeding e Hors-Saison emanam tal sedução que os deixei perseguir-me durante muito tempo, e as estreias excêntricas The Hypnosis (2023), My First Film (2024), This Closeness (2023) na MUBI provam-se brilhantes.
Para além destes, 2024 foi sobre explorar as notas de Matt and Mara (2024) – o cinema canadiano nunca foi tão bom -, deleitar-me na euforia nova-iorquina em Between the Temples (2024), na atmosfera humedecida daqueles anos 90 em Janet Planet (2023), na electricidade de The Human Hibernation (2024), no abraço de Bird (2024). Foi sobre descobrir Bushman e Family Portrait (2023), e as duas curtas-metragens The Diary of a Sky (2024) e Being John Smith (2024). Foi sobre estar presente para Fire Supply (2024) no DocLisboa e Vermiglio (2024) no LEFFEST, para o final de Anora, e para The Swallow (2024), e Bluish (2024) e The Outrun (2024), filmes que ocupam uma categoria deles mesmos na forma como falam só para mim: I am vibrating at a frequency invisible to man and I’m ready to be brave (Amy Liptrot).
Tiago Bartolomeu Costa
- Bruno Reidal, Vincent Le Port
- Le procès Goldman, Cédric Khan
- Emília Perez, Jacques Audiard
- Challengers, Luca Guadagnino
- How to Have Sex (How to Have Sex – A Primeira Vez, 2023), Molly Manning Walker
- The Substance, Coralie Fargeat
- Rapito, Marco Bellochio
- O Melhor dos Mundos (2024), Rita Nunes
- Keyke mahboobe man (O Meu Bolo Favorito, 2024), Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha
- Un couple, Frederick Wiseman
Os filmes só criam contextos na cabeça de quem os vê. Como ser-se espectador em Portugal se tornou cada vez mais difícil, a solitária organização por listas é um exercício de composição curatorial. Na minha lista, por exemplo, juntam-se filmes vistos em plataformas diversas (eufemismo para aquilo que se sabe), muito antes de o filme ter encontrado distribuidor ou ainda data de estreia, em festivais nacionais que esgotaram o potencial de público que os filmes pudessem ter. Dois apenas vistos em sala “comercial”, na esparsa, ditirâmbica e complexa rede de sessões avulsas e, depois, três vistos “lá fora”: O Processo Goldman vi-o em Outubro de 2023, em Lyon; O Meu Bolo Favorito em Junho de 2024 em Split; Emília Perez em Agosto de 2024 em Saint-Malo. A minha lista é o resultado de um quotidiano em que os filmes procuram um lugar para construírem referências, mas como o fazer quando ser-se espetador tornou-se um exercício de equilibrismo e paciência, sobretudo solitário?
Talvez Francis Ford Coppola tenha razão e só devesse haver um filme nesta lista, Megalopolis, pelo que lembra sobre a avisa sobre o relativismo, e sobre a moral. Talvez seja por isso que está aqui O Melhor dos Mundos, de Rita Nunes, curtíssimo para o tanto que anuncia, num debate que pode ser sobre como lidar com a informação, seja a previsão de um terramoto ou uma mudança emocional. Ao juntar os filmes, e eliminando outros para se chegar a estes dez, percebi que se falava de justiça e de perceção. Do que se diz e faz, e como é entendido. Os retratos de Bruno Reidal, Pierre Goldman e Edgardo Mortara (O Rapto), no modo como se constroem perante o primeiro público, em tribunal, são exercícios de convencimento do espetador, distantes pela ausência de contexto social, atentos às ferramentas dramatúrgicas necessárias a uma universalização do discurso. Fazem da relação entre o espetador o ecrã a materialidade de um pacto que só acontece quando escolhemos suspender a descrença e acreditar na verdade da ficção. E isto vale para as personagens de Emília Perez, The Substance e How to Have Sex: tornaram-se, e fizeram-nas, vítimas da narrativa que lhes foi imposta por um certo ideal social, fálico e tóxico. O cinema não as salva, mas culpa-nos. E isso é raro.
Diferente é a esposa de Um casal, animal feroz, expectante e bomba-relógio emocional, para lá da desilusão – vi-o num já muito distante DocLisboa em 2022, e até gostaria de ter incluído o mais recente de Wiseman, Menus Plaisirs – Les Trois Gros (2023), visto em Oslo em Fevereiro deste ano, que fala precisamente, a partir de um restaurante, de uma certa ideia de representação. No fim, Challengers, exercício de vaidade, de um erotismo cheio de medo, todo ele em espelhos, a perguntar se ainda nos excitamos com a sugestão. Ir ao cinema devia ser um ato sexual, de rasgo e de um limite como se fosse sempre urgente. Para nos saciar e, na petit mort, comermos o parceiro, como as louva-a-deus, e regenerarmos.
Tiago Ramos
- Challengers, Luca Guadagnino
- The Holdovers, Alexander Payne
- Dream Scenario (O Homem dos Teus Sonhos 2023), Kristoffer Borgli
- La Passion de Dodin Bouffant, Anh Hung Tran
- Love Lies Bleeding, Rose Glass
- As Ervas Secas, Nuri Bilge Ceylan
- The Substance, Coralie Fargeat
- Sigurno mjesto (Um Lugar Seguro, 2022), Juraj Lerotić
- Rapito, Marco Bellocchio
- Past Lives, Celine Song
Menções honrosas (ordenadas por nível de honorabilidade): Anselm (Anselm: O Som do Tempo, 2023), de Wim Wenders; Godzilla Minus One (2023) de Takashi Yamazaki; Dahomey de Mati Diop; Simple comme Sylvain (A Natureza do Amor, 2023) de Monia Chokri; Juror #2 de Clint Eastwood; Rien à foutre (Geração Low-Cost, 2021) de Emmanuel Marre e Julie Lecoustre; The Zone of Interest (A Zona de Interesse, 2023) de Jonathan Glazer; Les chambres rouges (Red Rooms, 2023) de Pascal Plante e Le Procès Goldman (O Processo Goldman, 2023) de Cédric Kahn.
O sorriso escarninho de Patrick Zweig enquanto leva uma banana à boca foi o melhor que o cinema nos deu este ano.
Os contornos da trama são clássicos: dois homens disputam uma mulher, o troféu em competição. Porém, Art e Patrick é que são o prémio de Tashi, uma tenista em ascensão que, depois de uma lesão, procura conquistar a glória por intermédio deles. Tashi não é um troféu – é o escalpelo que separa os amigos, até então siameses. Uma vez distantes, Patrick e Art reconhecem que o objecto de desejo compartilhado, Tashi, redirecciona-os invariavelmente um para o outro – é um ao outro que se querem. O desejo manifesta-se no court, onde as raquetadas expressam a voracidade dos corpos que se cobiçam e o sabor da vitória, orvalhada pelo suor, se confunde com o gozo do sexo.
Debaixo de um azevinho, Paul Hunham, um professor que se orgulha da disciplina espartana que impõe aos alunos, é desarmado pelo beijo que uma colega lhe dá no rosto. Ruborizado, Hunham responde a esse gesto dizendo que Eneias carrega consigo um azevinho aquando da catábase para falar com o falecido pai. Não sei quanto ao leitor, mas parece-me que esta amostra comprova que The Holdovers é a comédia do ano. Por sua vez, encontrei em Dream Scenario uma sátira absurda, de assinalável sobriedade, que atenta na falência da Verdade enquanto conceito operativo, que foi suplantado pela ideia de “percepção”, que é uma das palavras que mais contamina o discurso público.
Sobre La Passion de Dodin Bouffant, reporto para o primeiro plano do filme, que enquadra Eugénie a colher os vegetais que vão ser confeccionados para o jantar. O amor é inseparável do trabalho árduo e, por isso, quando o filme começa já ela está na lavoura. Eugénie antecipa-se ao próprio cinema. A delicadeza dos gestos e o aprumo do gosto de La Passion de Dodin Bouffant dão lugar à brutalidade de Love Lies Bleeding, cujos cenários mais comuns são o campo de tiros, o ginásio, as carrinhas de caixa aberta e os apartamentos adornados de piroseiras. Não há sensibilidade, só um apetite por sexo e violência que acentuam um mal-estar nas imagens e criam uma náusea alucinatória.
E qual é a realidade do bem e do mal no isolamento de uma comunidade rural da Anatólia, pergunta o protagonista de As Ervas Secas, um filme que insiste em não ceder a leituras e respostas fáceis. Menos enigmático é The Substance. As respostas à tese por si esboçada não são difíceis de divisar. A mensagem, feita à medida do espectador, neutraliza e higieniza os instintos profanadores do filme. Não obstante, cativou-me o fascínio pela superfície, o interesse pelas aparências, pelo corpo enquanto imagem. A propósito de Um Lugar Seguro, um drama realizado e protagonizado por Juraj Lerotić, que reconstitui os últimos dias de vida do irmão, que se suicidou, relato um incidente caricato. Na sessão do filme no IndieLisboa, durante o segmento dedicado às perguntas e respostas, um dos espectadores perguntou a Lerótic se o irmão tinha gostado do filme. Rapito também lida com a perda, neste caso da família, da pátria e de Deus. Edgardo Mortara é órfão apesar de ter dois pais, assim como é acometido por uma crise de fé, embora sinta o apelo de dois Deuses. Por último, selecciono Past Lives, um filme que, não obstante a dramaturgia e realização a espaços ilustrativa, retrata com acutilância a necessidade de se enquadrar a existência num arco narrativo que dê sentido à realidade.
Vasco Baptista Marques
- Los delincuentes, Rodrigo Moreno
- Folhas Caídas, Aki Kaurismäki
- A Torre Sem Sombra, Zhang Lu
- Juror #2, Clint Eastwood
- Terra Queimada, Thomas Arslan
- As Ervas Secas, Nuri Bilge Ceylan
- All We Imagine as Light, Payal Kapadia
- Rien à foutre, Julie Lecoustre & Emmanuel Marre
- La bête, Bertrand Bonello
- Le Grand Chariot, Philippe Garrel
Para além dos filmes, aquilo que marcou o ano foi, quanto a nós, o desconcertante (porque desconcertado) discurso crítico que foi produzido a respeito de um deles. Falamos aqui – escusado será dizê-lo – do Megalopolis, de Francis Ford Coppola, essa estranha espécie de filme vitivinícola ou de fumeiro que, segundo alguns, precisaria de pelo menos dez anos de maturação (mas por que não de vinte, quarenta, oitenta, mil?) para poder ser devidamente apreciado por parte de um espectador que, coitado, não se encontra ainda munido da rara capacidade de prever o futuro. Pela parte que nos toca, profetizamos que, daqui a dez anos, Megalopolis continuará a ser aquilo que em essência é: um gigantesco equívoco em forma de filme. Ou melhor: um objecto mal-amanhado (o trabalho de montagem e a direcção de actores são da ordem do susto), insuflado ao ponto da flatulência por ideias inconsequentes e por um imaginário digital híper-kitsch, e atravessado ainda por uma leitura crítica do estado das coisas da política norte-americana que vai oscilando entre a caricatura fácil e a candura infantil. Teve, quando mais não seja (e muito por causa da gravitas que o apelido “Coppola” carrega consigo), o mérito de dividir as águas e de suscitar discussões que, infelizmente, não contaminaram um conjunto de obras que – parece-nos – seriam delas bem mais merecedores. Como, por exemplo, os dez que figuram na nossa hierarquia, encabeçada por esse espantoso manual de evasão do tardo-capitalismo que dá pelo nome de Os Delinquentes (talvez o melhor trabalho saído da novíssima vaga do cinema argentino). Uma palavra, por fim, para o magnífico filme de Clint Eastwood (Juror #2), que, por decisão da sua distribuidora portuguesa, foi estreado em streaming nos últimos dias deste ano. Não é – salvo melhor opinião – o lugar mais adequado para descobrir um filme de tribunal tributário do cinema de Fritz Lang, que se destaca pela maneira (cada vez mais rara) como recusa simplificar as questões morais com as quais se confronta e nos confronta.
Vítor Ribeiro
- Bowling Saturne, Patricia Mazuy
- Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, Radu Jude
- The Zone of Interest, Jonathan Glazer
- Rapito, Marco Bellocchio
- The Substance, Coarlie Fargeat
- Folhas Caídas, Aki Kaurismäki
- No Interior do Casulo Amarelo, Thien An Pham
- Terra Queimada, Thomas Arslan
- Los delincuentes, Rodrigo Moreno
- Love Lies Bleeding, Rose Glass
(lista elaborada tendo em conta as estreias em sala de cinema, de 4 de Janeiro a 12 de Dezembro)
Uma das motivações para elaborar esta lista foi permitir o elogio da diversidade de latitudes e de autores no nosso circuito de distribuição, aliado também ao aparente ressurgimento do cinema norte-americano para um público adulto, a tentar escapar à captura pelas plataformas de streaming. Devo confessar que já tinha um filme para o topo – May December de Todd Haynes, até me aperceber que o filme ainda estreou em 2023. Há apenas um título americano na lista – Amor em Sangue – um domicílio conjugal no feminino, sob a influência da série B dos anos 50 (Attack of the 50 Foot Woman, 1958), mas há outros títulos contaminados por Hollywood e pelas suas vizinhanças: 20 anos depois, o regresso da cineasta francesa Patricia Muzay às nossas salas, com Bowling Saturne, recorda-nos os desafios morais de Abel Ferrara e coloca dois irmãos, um deles bastardo, a disputarem as preferências do pai, como num western; Coralie Fargeat, e o seu A Substância, superou o Titane de Julia Ducournau, ao criar uma espécie de ópera rock saída dos América dos anos 1980, como uma legitima herdeira de David Cronenberg, da transformação como uma necessidade do humano, e da obsessão com o envelhecimento, como se fosse um remake de A Mosca (1986). Também houve espaço para filmes belíssimos dos veteranos Bellocchio e Kaurismäki e o regresso às nossas salas de um dos grandes nomes do cinema alemão: Thomas Arslan. Um elogio para a tal diversidade, com obras de grande fulgor oriundas do Vietname e da Argentina, em que Os Delinquentes de Rodrigo Moreno sucedeu a Trenque Lauquen de Laura Citarella. E se há poucos títulos americanos nos dez primeiros, o pódio das menções honrosas é para eles: Tim Burton que parecera domado pela Disney ofereceu-nos um selvagem Beetlejuice Beetlejuice; a audácia de Todd Philips em converter Joker: Loucura a Dois num musical compensou; e Jeff Nichols, que continua à procura de abrigos, em The Bikeriders.