Numa programação quase inesgotável de recursos e percursos possíveis, o Carlos Natálio (CN) e o Ricardo Gross (RG) foram espreitar os zombies de Jarmusch, duas novas delícias romenas, a ambição desmedida do jovem polaco Marcin Malaszczak e a mestria do eterno Arturo Ripstein. Ah, e há um par de lésbicas que viram um urso.
Când se lasa seara peste Bucuresti sau metabolism (Quando a noite cai em Bucareste ou Metabolismo, 2013) de Corneliu Porumboiu
Na sua terceira longa-metragem, Corneliu Porumboiu filmou o que está entre o próprio cinema, a sua técnica e o acto de filmar. A câmara começa na parte de trás de um carro e Paul, um realizador, conversa com a sua actriz principal, Alina, com quem está a ter um caso. Não falam sobre amor, longe disso. Ele diz-lhe que em 50 anos já ninguém vai ver filmes e que a película, pela limitação que representa cada bobine, onze minutos e não mais, determina uma forma específica de ver o mundo. Se um statement fosse necessário eis a primeira conversa do filme, sem movimentos de câmara, onze minutos, uma bobine. Dir-se-ia que é essa limitação, motor do impulso criativo do romeno, que alimentou o ensejo de um filme parco em exuberância e concentrado na profundidade das suas personagens representadas em espaço de superfície: as paredes brancas da cozinha, da sala e do quarto, a simplicidade do set durante as refeições, as conversas da ligeireza à desconstrução.
Essa superfície como forma de olhar o profundo é também em Când se lasa uma forma de, como disse o realizador após a sessão, falar do estar entre. Não só o anamórfico que usou adensando o espaço entre as personagens e a nossa distância a elas, como o estar entre uma história de amor, de duas, aliás (por uma arte e uma mulher). É esse o problema de Paul entre as filmagens do seu filme e a sua actriz – “You’ve became the main character” – e por isso, para que possa continuar a estar com ela, que finge uma doença para adiar o fim das rodagens; o entre de Alina entre o affair e outro alguém; o entre da produtora no meio do seguro de saúde do seu realizador e a “saúde” do filme. E ainda o entre de Corneliu Porumboiu, entre o talento da escrita, plena de ironia e progressão de Éric Rohmer, Hong Sang-soo e, porque não dizê-lo, Jim Jarmusch. Mais um belo filme de um dos mais talentosos nomes do novo cinema romeno. (CN)
Pozitia copilului (Mãe e Filho, 2013) de Calin Peter Netzer
O outro filme romeno mostrado no festival não vem cá ganhar até porque já venceu este ano esse “pequeno” prémio chamado Urso de Ouro (além do FIPRESCI, distinção da Federação Internacional de Críticos de Cinema). Como ta,l é mostrado na secção Fora de Competição, que nesta edição teve a bela ideia de mostrar os prémios principais do circuito de festivais Sundance-Berlim-Cannes-Locarno-Veneza-San Sébastian. Ao contrário de Porumboiu e dos seus planos estáticos, à câmara à mão constante de Calin, Peter Netzer mostra um realismo nervoso, em movimento constante, para dar a ver as acções de uma mãe, acções de defesa (mas também de ataque), numa demonstração desesperada e disfuncional de um amor maternal. Se parece inevitável uma comparação, pelo menos pelo seu título e tema, ao filme de Aleksandr Sokurov, Mat i syn (Mãe e Filho, 1997), diga-se que essa comparação incomparável parte de resultarem precisamente de movimentos inversos. No filme do russo, o filho carrega a mãe que vai morrer, em Pozitia copilului quem morre é a criança. Aliás morrem duas. A primeira vítima de atropelamento negligente de Barbu (o filho, da mãe). A segunda criança morre de simbolismo e quem a mata é o realizador ao afrouxar a relação entre Barbu e a mãe. (Estranho movimento esse, talvez o melhor que o filme tem para oferecer, pelo qual para se deixar de ser “criança” é preciso matar uma criança). E, ainda face à obra de Sokurov, se nela a travessia pela natureza era o sinal de apagamento de obstáculos e de apaziguamento telúrico, aqui os obstáculos são mais que muitos e obstam a essa “morte”.
Não quero com isto dizer que Pozitia seja um mau filme. Nem sequer que seja um filme mediano. Talvez seja que nos últimos anos obras como Aurora (2010) de Cristi Puiu, 4 luni, 3 săptămâni şi 2 zile (4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, 2007) de Cristian Mungiu ou Toata lumea din familia noastra (Everybody in Our Family, 2012) de Radu Jude tenham colocado a fasquia do novo realismo romeno demasiado elevada e me tenham deixado mal habituado. Seja como for, é como diz a mãe da criança falecida: “se ao menos ele tivesse ido mais devagar ou se tivesse ido ainda mais rápido, não teriam chocado”. Talvez seja isso, uma velocidade a mais (ou a menos) que me deixa a pensar em algo por concretizar nessa relação entre os procedimentos burocráticos que podem salvar o filho da prisão [mais uma vez é essa máquina que não funciona que está presente no cinema romeno desde Moartea domnului Lazarescu (A Morte do Sr. Lazarescu, 2005)] e os procedimentos emocionais que o salvam de uma “prisão” feminina. (CN)
Sieniawka (2013) de Marcin Malaszczak
As primeiras obras trilham frequentemente um de dois caminhos: ou a repetição e consolidação pessoal de modos de fazer dos que os inspiram, ou fazem o inverso, procuram a ruptura estética, o original, o nunca dantes feito. O filme de estreia do polaco Marcin Malaszczak pertence felizmente ao segundo caso. Ambição desmedida, falhada até certo ponto, mas com vontade de impor um ambiente e explorar a relação entre o espaço físico e o mental, entre o pós-apocalíptico vindo do real e a felicidade da loucura. Com isto não se pense que as referências do jovem realizador não estão à vista: a zona de Tarkovsky, a natureza e as árvores de Tarr, a loucura, a desolação de Beckett. E depois há a democracia, que pertence ao mundo dos vivos, e tudo arrasa.
Sieniawka, título do filme, é uma pequena vila polaca na fronteira com a Alemanha, zona conhecida por ser precisamente um espaço de fronteira e pelo seu hospital psiquiátrico. É nessa “fronteira” que o filme balança, querendo partir de imagens “documentais” de observação do manicómio (onde velhotes dançam tecno, percorrem os corredores às arrecuas e jogam ténis com bolas imaginárias) e a construção de uma fábula de ficção científica que não deixa de questionar a relação entre sanidade e loucura, memória e imaginação. Existem também as ruínas da vila, o comentário social da Polónia física a desfalecer (num dos planos vemos uma bandeira do país, única coisa que se mantém de pé, digna, num deserto de destroços), os planos lentos do revolver da terra, dos tubos intermináveis, das aranhas. Marcin quer mostrar um lugar imaginário, tão idílico quanto devastado e levar-nos para lá. Os contornos desse lugar são precisos, mas a estrutura, a abstracção da ideia, exigem um trabalho mais depurado, algo que virá, certamente, nos próximos anos. (CN)
Vic + Flo ont vu un ours (Vic + Flo viram um Urso, 2013 ) de Denis Côté
No penúltimo filme do cineasta canadiano, Bestiaire (2012), um documentário sobre a presença, o olhar animal no Parque Safari no Quebec, o cruzamento do gaze produzia algo da ordem da desolação. Na ficção, a coisa expande-se e a mulher-animal, contrariando o ont vu un ours do título, não vê precisamente essa animalidade próxima. Mas nós vemos. Côté filma as suas personagens como se estas desconfiassem, como se estivessem justamente na iminência de ser observadas, contidas na sua frágil animalidade. Isso é o cerco da liberdade condicional a Victoria (visto pela compreensão phony do agente Guillaume), é o tio Champagne homem barbas de urso que vê, ouve mas não fala, é a criança que vem tocar marchas fúnebres fora de tom, é o vizinho cara de porco e o seu filho, o pobre Charlot escanzelado em tronco nu.
São estas pessoas, metade gente, metade índices do surreal, que permitem ao cineasta filmar a inevitabilidade da desagregação a partir de um espaço de isolamento. Ao caso, uma cabana no campo [ela é o espaço tipo de Côté para fazer rimar o exílio exterior e interior das suas personagens, lembrem-se de Nos Vies Privées (2007)] na qual a ex-presidiária Victoria e a ex-companheira de cela e namorada, Florence, se “refugiam”. Querem refazer a sua vida, o agente diz-lhe que têm de arranjar hobbies normais, até há uma horta. Os interlúdios de percussão vão dando um ritmo thriller à coisa, desfazendo as carreirinhas dessa horta e mostrando que não há possibilidade de reintegração social para ninguém, nem sequer de amor. No final, o urso surge finalmente e é nas mãos de Denis Côté. Vic + Flo ont vu un ours venceu o prémio Alfred Bauer na edição deste ano do festival de Berlim. (CN)
Only Lovers Left Alive (2013) de Jim Jarmusch
Dois aspectos gerais de maior relevo no mais recente filme de Jim Jarmusch, Only Lovers Left Alive, são sem dúvida o lado estético, muito por obra da extraordinária direcção de fotografia de Yorick Le Saux, toda a gama cromática desmaiada como se alguém lhe tivesse drenado o viço, substituindo a intensidade natural dos vermelhos, verdes e azuis, por outras correspondentes sépia que sugerem uma aura de fim dos tempos ou de um tempo sem cronologia determinada; e depois o facto de todo o filme se passar à noite, algo apenas surpreendente por ser prática rara no cinema, mas que de alguma forma também explica por que é a humanidade no filme de Jarmusch apelidada de zombies (de espírito, depreendemos) pelos vampiros. Only Lovers Left Alive cruza as mitologias do rock e do gótico com vampiros para dar a sua versão da eternidade alimentada com sangue humano, só que não um sangue qualquer. O filme estabelece o culto alargado a tudo quanto seja antigo, dos automóveis aos instrumentos musicais, dos discos de vinil às fotografias rasuradas pela passagem do tempo, imagem de gente em grande parte já desaparecida mas que se mantém presente nas referências do realizador, e o próprio sangue ingerido pelos protagonistas – os excelentes Tilda Swinton e Tom Hiddleston – tem de ser vintage, de contrário produz sintomas próximos do envenenamento.
A acção decorre entre Tânger, marcada pela tradição dos expatriados do Novo Mundo que para ali se dirigiam entregues a uma existência livre das convenções socioculturais anteriores, e Detroit que, vítima do colapso da indústria automóvel local, se tornou nalguns cenários uma espécie de cidade fantasma em tom realista. Existe aqui um romantismo que cultiva o passado de forma obsessiva e surpreende que esteja isento de pathos: nada é sentido como especial condenação (ou deixaria de ser cool) pelo casal de vampiros, Adam e Eve, que ao longo dos tempos experimentou demoradas separações que nunca o foram em absoluto porque sentiram sempre tudo o que o outro sentia numa união telepática, quando não também física. A elegância decadentista do filme de Jim Jarmusch coloca-o em território alternativo até ao que constituía a obra do realizador. Jarmusch a encaminhar-se para um reduto cada vez mais seu, povoado por fantasmas nem todos contemporâneos dele (a não ser que Jarmusch se venha um dia a revelar na pele de vampiro), pontuado pela música fúnebre de séculos atrás e pelo deveras slowcore. (RG)
Las razones del corazón (2011) de Arturo Ripstein
Numa época de pipocas saltitantes e borboletas in your face a todas as dimensões, de jovens aos pulos no meio das ruas em anúncios de telemóveis, parece ser uma tortura macaca entrar numa sala escura para ver uma adaptação solta e sombria, num preto e branco claustrofóbico, de “Madame Bovary” de Gustav Flaubert. Mas, diz Pascal, o “coração tem razões que a razão desconhece”- é o mote desasado de um título TVI “As razões do coração” – e por isso, mas também porque Arturo Riptstein é o maior cineasta mexicano vivo, vale muito bem a pena suportar toda essa escuridão. Emília, trintona mal casada, com uma filha de 10 anos, está deprimida. Ela tem um amante, um músico cubano que vive num cubículo no terraço do seu prédio, que lhe dá agora com os pés (“o teu amor sufoca-me”), depois de ter passado a novidade do affair. Mas Emília (extraordinária, possuída, Arcelia Ramírez) é uma “mulher sob influência” de Gena Rowlands [A Woman Under the Influence (Uma Mulher Sob Influência, 1974)], de Catherine Deneuve [Repulsion (Repulsa, 1965)], de Vivien Leigh [A Streetcar Named Desire (Um Eléctrico Chamado Desejo, 1951)] e o amor é só um dos seus problemas, é que a vida, toda ela, magoa.
É difícil de definir as razões da angústia de Emília, mas elas estão desenhados no desespero do rosto, no ar, pelo fumo constante dos cigarros, no bailado esquizofrénico (que pesada palavra) pelo apartamento que o olhar de Ripstein persegue insistentemente. Como se fosse o rasto do cinema por sobre o literário das suas palavras (o romance de base está presente) e em cima da teatralidade (pela representação mas sobretudo, pelo confinamento do apartamento). O espaço de um inferno, privado, doméstico, do qual só se pode sair livre e/ou morto. Sabemos que o marido é um idiota sem coragem, que a crise lhe vai levar a televisão da menina, que há um fosso entre o sonho e aquele preto e branco na realidade. Mas como sempre em Ripstein, o pessimismo é uma afirmação de personalidade, algo irreversível e impossível de mudar. Esse beco sem saída é o irrespirável de Las razones e há a coragem do melodrama, sem ironia, do lado de lá e que nos põe a sorrir do lado de cá. Tudo termina contra a indignação, solene, como um desejo cumprido. E, finalmente, o alívio de sair de casa. (CN)
Gloria (2013) de Sébastián Lelio
Personagem Gloria, interpretada pela chilena Paulina García: se isto não é uma actriz; se não é isto uma mulher. O filme de Sabastián Lelio contrapõe à ternura dos 40 (fora de contexto e muito nossa), a cobardia dos 60. Por oposição a Gloria, mulher divorciada que vive sozinha em Santiago, e que busca pareja, como por lá se diz, saindo para dançar algumas noites. Num desses programas conhece Rodolfo, também sozinho, e de par em par, que alimenta a dependência de duas filhas adultas além do que seria razoável. Gloria e Rodolfo viverão um breve romance, tão passional como um namoro de jovens, até que ele a deixa sem dar explicação. É o momento do desamparo de Gloria, quando o filme encontra a personagem e a actriz no mesmo nível. De contrário vai sempre atrás, e por vezes, como no ajuste de contas de Gloria com Rodolfo, ou na festa de casamento com que o filme encerra, deparamo-nos com um registo demasiado literal para dar substância visual e sonora à vitalidade e ao optimismo da personagem.
Existe também o gato de raça Sphynx (distingue-se pela alopécia hereditária) que pertence ao vizinho de cima de Gloria, que tem por hábito escapar para o apartamento dela. O bicho sem pêlos, sugestão de vulnerabilidade, é uma tradução feliz da natureza da mulher que de início o enjeita. Aquela que se oferece à vida tal como é. Sem camadas protectoras; sem dissimulações. E que belo plano o que nos dá a ver Gloria nua e estendida sobre a cama, com o gato do seu lado. Tem apontamentos assim, o filme de Sebastián Lelio, e o despertar de Gloria na praia de madrugada é outro. A capacidade de algum cinema latino-americano para mostrar vidas feitas de fragilidade e inteireza. Mas também são líricos os latinos, e o lirismo prega partidas quando não há emenda possível. Gloria desequilibra-se algumas vezes e depois ergue-se de novo. Glória a Paulina García, justíssima merecedora de todos os prémios. (RG )