Lisboa, 9 de Novembro de 2014 – Dia 3
Reparo agora que isto de achar Maps to the Stars (2014) o pior filme de Cronenberg ou o sonho canibal de um amnésico se tornou moda, ainda para mais tratando-se de um velhinho e todos sabemos como os velhinhos ficam mais desprotegidos à medida que avançam os anos, mais desleixados, esquecidos, para onde foi o teu cinema, meu velhinho? Mas tudo nasce, cresce e morre, senhores… Tudo certo. Seria hipócrita não elogiar o meu direito à preguiça no contexto do qual me predispus a não rever nenhum Cronenberg de ouro, daqueles onde quando cada cabeça explodia, explodia na cabeça do espectador uma metáfora de uma raça infectada pelo consumismo vigoroso ainda não atacada pelo diletantismo.
Cronenberg parece ter cedido à variação diletante de si próprio, parece que é isto que está em causa. Neste mapa das estrelas não há trajectos muito elaborados (chame-se telefilme, colagens, briqueabraque, pouco importa) e há à partida uma exaustão. O sonho na cabeça das estrelas é um sonho pobre, debilmente executado, de uma usina dos sonhos em pane que já só seria capaz de produzir uma degenerescência de uma obra de arte. Mas isso é levar adiante o que produz essa falha no sistema de imaginação que filmes como The Bling Ring (2013) ou Spring Breakers (2013) também querem tocar.
Há um mapa interior no cinema de Cronenberg que explica esta maldição. Filmes sobre a peste, a contaminação como The Brood (A Ninhada, 1979), Videodrome (1983), com uma dimensão psicanalítica edipiana, interiorizada [A Dangerous Method (Um Método Perigoso, 2012)] e finalmente a canibalização deliliana das angustias tecnológicas do capital em Cosmopolis (2012) compõe esse trajecto de autopsia psíquica das estrelas de Hollywood. O filme é linchiano [Mulholland Drive (2001)], caricatural, divertido e tem uma estrutura usual de chaço velho.
Esse chaço é o resultado de uma demonização do corpo das estrelas (o modelos de todos os corpos) em estado final onde já não há espaço para a inscrição no corpo da metáfora que literalizava, materialmente, o cinema de Cronenberg. Nesta paragem da máquina – do corpo e do corpo de Hollywood – a única personagem que sentiu nele a metamorfose, o fogo desfigurante, falo de Mia Wasikowska, é expulsa de Los Angeles. Destas inscrições apenas há sonhos remotos, psicóticos e fogos em CGI. Neste jogo de camadas a visceralidade do pós modernismo é só mais um momento Vicodin que amanhã pode ser esquecido. Assim, o cinema de Cronenberg não se coaduna; tem, como os irmãos amaldiçoados, de recomeçar. Esta softness esburacada, académica, de Maps to the Stars está apenas e tão só a narrar essa impossibilidade. A dizer: vejam, aqui estão as ideias, os corpos com as quais elas são possíveis de declinar, já partiram. Cronenberg a escrever no papel um epitáfio do seu cinema e a filmar esse papel fino.
Contudo Maps to the Stars não parece apenas um filme que quer dançar no pó e nas cinzas das outrora glamorosas estrelas do ecrã. Há um lado amaldiçoado que me seduz. Como seria se, como o sangue azul das dinastias reais, como os 90 e tal por cento da riqueza em Portugal nas mãos de três ou quatro famílias, esta gente estivesse meio tantã porque andasse toda a casar umas com as outras para preservar a espécie?
Entretanto, o glamour como brilho que contamina ao ponto da obscuridade de julgamento, a Julianne Moore em versão Gloria Swanson e Todd Haynes, o film noir, as piscinas onde a água ou o fogo causam a morte, esse fogo devorador de famílias e maldições (Manderlay, Manderlay), o mono no aware de Cronenberg, as quecas em limousines tudo acrescenta valor.
Talvez esteja a ser optimista mas afinal é domingo, é um fim-de-semana onde o Porto e o Sporting empataram e na televisão as pessoas ainda tratam os homossexuais por “excêntricos” como medo das palavras. Por favor, não me peçam para embirrar com filmes.
Entretanto, enquanto não saem as fotografias da Mariana Castro sobre o festival onde se pode ver que o Wes Anderson é uma versão aprumada e mais alta do Leo Messi, atentem nestas duas imagens:
Pensem nisto. Até amanhã.
Lisboa, 10 de Novembro de 2014 – Dia 4
Hoje foi dia F. F de Ferrara.
Não quebrei o regime do filme-diário (vou guardar esse trunfo lá mais para a frente) só vi Pasolini (2014) mas recupero aqui o que tinha escrito no vento das redes sociais sobre o outro filme do nova-iorquino Welcome to New York (2014), sobre a persona de Dominique Strauss-Khan, que também foi exibido hoje. Escrevia que:
O corpo de Gerard Dépardieu – que era suposto ser o símbolo da encenação minuciosa da alta finança, do jogo/negócio da pobreza – nas suas opulentas carnes, ora projectadas, ora ofuscadas pelas luzes dos quartos de hotel, é antes sinal de grotesco. Esse grotesco, em que se vê mais do que era suposto quando conduzido pelo “fazer ver” representativo, mostra duas coisas. Uma, que a carne não se encena. Duas, que a pulsão sexual predatória parece almejar um estatuto qualquer de dignidade muito primária quando colocada lado a lado com a racionalidade insuperável do livro de cheques.
Posto isto fico a pensar no que liga Strauss-Khan a Pasolini. Se calhar nada mas foram dois filme sobre figuras históricas que Ferrara quis colocar sobre o filtro do seu cinema em 2014. Porquê este regard por estas pessoas? Ferrara já fez documentários mas aqui é o impulso do real concreto (o assédio sexual de Strauss-Khan a uma empregada de hotel em Nova Iorque e o assassinato de Pasolini nas redondezas de Roma em 1975) que o levam a ficcionar. Neste artigo o Vasco Câmara contou que a versão de Ferrara era que ambos estavam unidos “pela coragem da solidão, porque em ambos essa solidão era em si qualquer coisa de herético”. Fico a pensar nesta resposta, que não me convence de todo mas não tenho alternativa… Assim estamos.
Na conversa com o público após a sessão, no seu jeito bully bad-boy com coração de manteiga, Ferrara disse que aos 20 anos quando viu Il Decameron (Decameron, 1971) ficou menos convencido da sua própria genialidade e da importância das curtas que tinha feito nos anos 70 e apercebeu-se que Pasolini raised the bar so high that he couldn’t see the bar. Se em Welcome to New York há uma certa admiração pelo encurralamento de Khan e pela extrema ditadura do seu instinto (o que fazia com que estivesse à vontade para filmar a carne de Dépardieu de fora, curioso, pensativo) com Pasolini, a carne do seu cinema está tão imprimida no trajecto de Ferrara que não há esse espaço para ver o realizador de Salò o le 120 giornate di Sodoma (Salò ou os 120 Dias de Sodoma, 1975) de fora. Por isso Pasolini é um filme demasiado próximo a um ídolo, feito com demasiado gut feeling, transformando-o por vezes nessa figura arquetípica do seu cinema, punk, óculos escuros, na noite. Pasolini herói sobre quem há um certo pudor em mostrar o corpo, em mostrar a sujidade pura sem estilo do seu imaginário. Nesse impasse, o cinema de Pasolini parece devorar a homenagem (Ferrara falou disso mesmo quando decidiu abrir o seu filme com as imagens da abertura de Salò) e o espaço do homem polémico e multifacetado – que falava do fim da narrativa, do ódio à televisão portadora de notícias-legionella, do “desaparecimento dos pirilampos” como símbolos de resistência, pouco tempo antes de morrer – dá lugar às cenas de carácter burlesco (a aparição de Maria de Medeiros) ou de pura emoção pelo desaparecimento do mestre, com a música de Maria Callas e o desespero de Adriana Asti (actriz de Accatone) no papel de mãe de Pasolini.
Fica impresso no ecrã a morte do italiano. É pena que juntamente com um filme onde as orgias sejam apenas as orgias de reprodução e Ferrara não tenha conseguido conter-se nos fogos de artifício e nas estrelas de Belém. Entre a merda de Salò que Pasolini nos tinha deixado e a claridade total do novo “fascismo cultural” que já não permitia ver os clarões na noite, estes fogos de artifício são cópias pálidas da intermitência dos seus poéticos políticos pirilampos. Quase 40 anos depois da sua morte, as “linhas de fuga” da trilogia da vida permanecem fechadas.