Quero falar-vos sobre duas coisas nesta crónica: primeiro, sobre The D Train (2015), uma comédia desconfortável capaz de rivalizar com esse clássico chamado The Cable Guy (O Melga, 1996); segundo, a partir de dois filmes que apanhei a dar na televisão, o primeiro Iron Man (Homem de Ferro, 2008) e Ant-Man (Homem-Formiga, 2015), gostava de discorrer um pouco sobre o fenómeno dos filmes de super-heróis, o mesmo que recentemente John McTiernan apelidou de fascista. O que junta uma coisa à outra? Uma certa falência de ideias no coração do cinema norte-americano: as comédias que são amontoados de gags desinspirados que visam pouco mais que umas quantas “belly laughs” e os filmes de super-heróis que, por norma, glamorizam uma moral se não fascista, pelo menos militarista, que propagandeia de uma maneira mais ou menos evidente uma espécie de update do “I want you” do velhinho Tio Sam.
Falo destas tendências pouco apreciáveis, que muitas vezes sobressaem quando descobrimos filmes – ou momentos em filmes – em que qualquer coisa se desvia do discurso várias vezes repetido. Contudo, se queremos falar em cinema político de heróis “super” ou comédias que fazem do humor assunto de muito desconfortável interpelação junto do espectador, importa descermos à boa metodologia do “caso a caso”. “O mero reunir de casos sossega a inquietude”, já dizia o bom velho Ludwig Wittgenstein.
The D Train é um filme protagonizado por Jack Black. Trata-se da primeira realização da dupla que escreveu Yes Man (Sim!, 2008), Andrew Mogel e Jarrad Paul. Surpreendentemente ou não, o filme foi lançado em estreia na televisão portuguesa, pela mão dos canais TVCine. Esta comédia não se reduz a efeitos auto-depreciativos, muitas vezes apatetados, do gang liderado por Will Ferrel ou da trupe de Judd Apatow (Seth Rogen, Jonah Hill, James Franco, Jason Segel, etc.). Ele faz saltar permanentemente esse investimento auto-depressivo para o lugar do espectador. O embaraço e desconforto no filme implica-nos de forma muito directa. Rir, sim, mas engolindo sempre em seco, porque a piada pode não ter graça nenhuma.
Em 1996 uma comédia teve este efeito devastador. Chamava-se The Cable Guy, apenas a segunda longa-metragem daquele que continua a ser – a meu ver, com Paul Feig – o realizador mais interessante no universo da comédia norte-americana: Ben Stiller. Claro que o filme não é bem dele. Jim Carrey varre cada cena com a sua performance eléctrica e electrizante. Ele é o melga que azucrina a vida desse papalvo interpretado por Matthew Broderick. Qual a relação com The D Train? Nos dois filmes trabalha-se uma perturbante tensão sexual entre os dois protagonistas masculinos. Uma tensão que não se quer clarificada.
Por trás dos fatos e masquerades há um sorriso irónico que relativiza a dimensão política destes filmes de super-heróis, mas que esta existe, de facto, existe e não há como fugir dela.
Em The D Train a vida entediante de um típico “bom pai de família”, Dan Landsman, é abanada pela entrada em cena de um ex-amigo de liceu, o super-cool Oliver Lawless. Dan, presidente do comité que organiza o jantar de reunião dos coleguinhas de liceu, quer garantir a presença de Lawless, na medida em que está convencido que este pode servir de isco a todos os convidados que não estão muito virados a participar num evento potencialmente embaraçoso. Dan fará tudo para conquistar Lawless. E quando digo tudo digo tudo. A relação entre os dois vai ganhando contornos imprevisíveis. A forma como esta relação se vai transformando ao longo do filme, por um factor que não irei aqui desvendar, é a sua grande força simultaneamente cómica e trágica. A química entre Jack Black e James Marden é vital para que The D Train resulte num dos mais perversos bromances do cinema recente (o título alternativo é mesmo bad bromance). Eis, enfim, um direct-to-TV a ter em conta.
Muito se tem escrito sobre a moda dos filmes de super-heróis. Lembro-me das palavras de grande desalento de James Gray, aquando da sua passagem pelo Lisbon and Estoril Film Festival. Dizia ele que o cinema norte-americano estava sequestrado por homens em collants. John McTiernan é outro homem que não se identifica com esta “adolescização” do cinema pela mania dos comics com super-heróis. Recentemente deu uma entrevista à revista Premiere. Nela, acusa os estúdios de “envenenarem os filmes com a sua ideologia” e de “Só fazerem adaptações de bandas desenhadas. Há acção, mas não há seres humanos, são tudo filmes feitos por fascistas”. Com estas palavras, McTiernan não estava a visar apenas o mais obviamente reaccionário realizador deste tipo de filmes: Zack Snyder. O que o realizador de Last Action Hero (O Último Grande Herói, 1993) visa é um contexto mais largo, que inclui dezenas de filmes, com orçamentos a rondar os 100 ou 200 milhões de dólares, e que têm na base uma premissa inquietante em torno de um qualquer messias armado até aos dentes, que faz do seu poder de fogo a principal medida da sua heroicidade.
Neste momento penso que será legítimo dizer-se que o género dos super-heróis é quase tão dominante hoje como o western o foi nos anos 40 e 50 em Hollywood. E talvez seja análoga a nossa desconfiança em relação à dimensão hiper-popular do fenómeno. Por isso, é preciso resistir às nossas suspeições ou antipatias mais imediatas – de facto, eu pessoalmente sou tão entusiasta do género quanto McTiernan ou Gray – e procurar olhar, filme a filme, para se perceber o que há a retirar deste fenómeno.
Na televisão, nestes dias, respectivamente nos canais TVCine e no AXN, apanhei dois títulos que se inscrevem no género: Ant-Man e Iron Man. É curioso ver como nestas duas obras há uma questão de poder que se disputa em torno de se saber quem controla as máquinas de guerra. Iron Man vai politicamente mais longe na sua desfaçatez quasi-fascista: o nosso herói é um cínico multimilinário que ganha a vida a fabricar o mais sofisticado armamento de guerra. O tom dos dois filmes indica-nos que estas narrativas não são para ser levadas muito a sério. Por trás dos fatos e masquerades há um sorriso irónico que relativiza a dimensão política destes filmes, mas que esta existe, de facto, existe e não há como fugir dela – ela não passará despercebida ao olhar mais atento e afiado do próximo cinéfilo. Robert Downey Jr. é um one man show extraordinário, o seu talento é usado como uma manobra de diversão para se dar passagem ao subtexto incrivelmente prepotente do filme: a redenção deste homem acontece quando este constrói “a arma das armas”, que lhe permite policiar o mundo ainda melhor do que o exército oficial dos Estados Unitos da América. A repugnante sequência em que o homem metalizado evita que um pai de família árabe seja assassinado por terroristas sádicos atesta esta visão do mundo que atribuiríamos à mentalidade mais reaccionária (ou “trumpista”) que vinga hoje na sociedade norte-americana: “vejam como a nossa ‘mão de ferro’ resolve os problemas causados por estes bárbaros”.
Em Ant–Man, também estamos entre gente poderosa, que administra o poder a partir da pesadíssima indústria de armamento. Um “zé ninguém”, com um cadastro composto apenas por pequenos delitos, revela-se o homem providencial que vai vestir esse “fato artilhado” que o transforma numa temível máquina de guerra. Tem esse fato uma particularidade, que não encontramos na figura do “homem de ferro”: permite a quem o usa ficar do tamanho de uma formiga. Não estamos aqui tomados pelo tom enfadonhamente sério dos Batman de Nolan. Em Iron Man uma narrativa política é forjada dentro do registo – e por pessoas – da comédia – Jon Favreau, o realizador, celebrizou-se neste domínio, inclusivamente como actor. Ant-Man é da autoria de Peyton Reed, realizador de comédias, como a já citada Yes Man e é protagonizada por Paul Rudd, um dos elementos do gang Apatow. Nestes filmes há uma verve humorística que não é, então, alheia ao passado dos seus realizadores.
Não estamos, portanto, aqui enquadrados por essa imagem que muito se tem veiculado do realizador que é colocado à frente de produções deste género: “An overpaid tool”. Esta expressão é sacada directamente daquela que é uma das mais desbocadas peças críticas sobre a moda dos super-heróis; nada mais nada menos que dos créditos de abertura de Deadpool (2016), uma espécie de “anti-filme de super-heróis”. Pois bem, nestes dois filmes o papel instrumental do realizador não me parece tão evidente. Há, de facto, uma apropriação de um universo de banda desenhada por um universo fílmico previamente constituído. Mas isto não faz destes filmes, automaticamente, bons nacos de cinema.
Ant-Man está imbuído do bom espírito série B de um Jack Arnold, mas não chega aos calcanhares do melhor Joe Dante – para dizer a verdade, nos últimos tempos, nem o próprio Joe Dante tem chegados aos calcanhares do melhor Joe Dante. Esta narrativa de “micro-heróis” apresenta uma dramaturgia que é rapidamente atropelada pela necessidade de pôr em cena uma miríade de “efeitos”. Há dias apanhava na Internet um cartoon que é particularmente criativo a desmontar este paradoxo: espectadores envergando óculos 3D, usufruindo de tudo a que têm direito no âmbito do cinema dos blockbusters. Mas o ecrã apenas lhes oferece um espectacularíssimo “DESPERDÍCIO DE DINHEIRO”. Pois bem, mesmo num filme conseguido como o é Ant-Man sente-se aquilo que enforma parte da crítica de McTiernan: muita parra e pouca uva. Ou melhor: os “efeitos especiais” a darem porrada à preocupação pelas personagens.
No limite, as personagens são, de facto, ruído de fundo dentro do espectáculo do filme. Iron Man tem boas doses de energia sexual, muito graças ao duo Robert Downey Jr. e Gwyneth Paltrow. Tem muitos elementos que o aliviam da carga séria/filosófico-metafísica de um Nolan. Mas não deixa de ser um filme que se leva minimamente a sério e, nesse sentido, é um proponente desta ideologia do filme de super-herói. Atrás comparei esta ideologia à do western, mas esta parece formar-se mais nitidamente dentro do contexto de paranóia securitarista pós-11 de Setembro, tal como nos anos 70 Hollywood instituiu, nas personas de Charles Bronson ou Clint “Dirty Harry” Eastwood, o filme do vigilante como forma de dar uma resposta à criminalidade pululante que se fazia sentir na sociedade norte-americana.
Iron Man entronca com a tendência fascizante – da indústria ou do espectador? Bem, essa é a grande questão! – que domina este género de filmes. Mas não podemos ser injustos: este não é um produto anónimo ou mesmo destituído de ideias. Precisamos de ser pacientes, tapar os olhos em certas sequências e tentar usufruir dos momentos em que o cinema regressa à sua matriz originária: câmara e actores. A verdade é que muitas vezes nestes filmes apenas vislumbramos cinema nos intervalos dessa ideologia fascizante – do dinheiro e das armas – que tanto os sufoca.